O Dante Negro

O jornalista Uelinton Alves lança hoje na Biblioteca Nacional a biografia “Cruz e Sousa — Dante Negro do Brasil” (Editora Pallas), às 19h, após mesa-redonda, às 18h, com o presidente da instituição, Muniz Sodré, e o ministro Edson Santos, da Secretaria Especial de Política de Promoção da Igualdade Racial (Seppir). O lançamento ocorre na abertura da Semana Cruz e Sousa, dedicada aos 110 anos de morte do poeta, maior expoente do simbolismo no Brasil. Será inaugurada uma exposição com documentos e peças sobre o poeta e amanhã (quinta-feira), entre 13h e 17h, haverá debate com especialistas, com a participação do poeta Alexei Bueno, da professora Conceição Evaristo e do cineasta Sylvio Back. Abaixo a íntegra da entrevista - da qual se publicam trechos nesta quarta-feira no Segundo Caderno do Globo - concedida por e-mail por Uelinton Alves:

O cineasta Sylvio Back, que participa de debates na próxima semana, já disse que Cruz e Sousa é tema apenas de estudos biográficos fragmentários. Como vê a questão? Acha que seu livro preenche de fato esta lacuna? De que livros partiu, principalmente? (Raimundo Magalhães Jr., Iaponan Soares etc?)
UELINTON ALVES: Quando fui chamado para fazer consultoria biográfica do filme de Sylvio Back sobre Cruz e Sousa, o cineasta catarinense já me falava dessa questão da fragmentação biográfica nos livros que tratavam sobre o poeta. De algum modo, Sylvio Back não está errado. Mas precisamos admitir que os livros não são completos, eles sempre deixam uma brecha, uma lacuna, por razões conceituais e por razões de competência estilística de cada autor. Ainda mais quando se trata da retratação (ou tentativa) da vida de alguém que, como Cruz e Sousa, sofreu por ter excecido essa paixão pela vida, vivendo-a extremadamente, sob todas as formas de riscos e perigos, nos abismos da pele preta, forjada nos descaminhos da senzala do mal do século, que foi o século da escravidão humana. Quanto ao meu livro, "Cruz e Sousa: Dante negro do Brasil", que tenho a felicidade de editar pela Pallas Editora, da Cristina Warth, ele se propõe realmente preencher uma lacuna, até para que seja viável editorialmente no sentido de que há novidade e que há assunto. Nos últimos 30 anos, mais ou menos, em termos biográficos, nada de novo se escreveu sobre Cruz e Sousa. O livro de Raimundo Magalhães Júnior data de 1961 (com reedições sucessivas, sendo a última de 1975). Já o pesquisador Iaponan Soares (que, diga-se de passagem, não é um biógrafo) publicou seu livro em 1988, com dados interessantes, mas não trabalhados em termos biográficos, pois não busca as razões para os fatos, apenas os informa, e isso lá se vão 20 anos.
Li muitas obras sobre Cruz e Sousa e principalmente o que o poeta escreveu. Este é o meu quinto livro, não o primeiro. Uma particularidade é que todas as obras se repetem, na forma e no conteúdo. Sobre a infância, sobre a escolaridade, sobre a família, giram pelo mesmo diapasão. Digo diapasão no sentido de não haver contestação um do outro. É estranho tudo isso, mas quando se vai aos arquivos históricos, às publicações de época, vamos nos deparar com algo totalmente diferente, novo, visto de outra maneira. Então, a fragmentação de que fala o genial Sylvio Back é, na verdade, uma mensurada farsa, uma forjação, um trabalho de biblioteca escolar básica de quem sequer teve a coragem de colocar a cabeça para fora da janela ou de gastar sola dos belos sapatos lustrosos.

Seu livro se baseia em extensiva pesquisa histórica. Conte-me um pouco sobre essa trajetória de pesquisa. Como nasceu seu interesse pelo autor, e como procedeu para juntar tantos dados? Quais foram os arquivos que mais visitou? Chegou a usar correspondências?
ALVES: O meu interesse por Cruz e Sousa (em foto de arquivo ao lado) se deu na década de 1980. Fiz algumas palestras sobre o poeta em escolas e bibliotecas públicas aqui do Rio. Uma coisa me inquietou bastante o espírito, era a origem do poeta: negro e catarinense. Ora, quem conhece o estado de Santa Catarina sabe que por lá a população negra é pouco representativa estatIsticamente, sobretudo se levarmos em consideração a origem daquele belo povo. O caso de Cruz e Sousa é mais particular ainda, e eu diria único. O poeta nasceu no século XIX, no período da escravidão, antes da Lei do Ventre Livre, portanto. Exatamente este homem negro é que se destacaria como o elemento de elevado pendor intelectual e artístico para as letras da terra, tão grande como Vitor Meireles ou como os heróis que batalharam nas guerras. O fato intrigante é que esse negro, sem oportunidades, sem histórico de estudos na família, sem tradição ou meios, foi esse negro que chegou para enegrecer ou racializar toda a história do estado e de sua população, porque é dele que lembramos agora, e quem olha de fora (os brasilianistas, como Roger Bastide, por exemplo) há de pensar que aquele pedaço da brasileira é tão negra como a Bahia ou quanto o Rio de Janeiro. E o fenômeno é que o estado, província da época, não o aceita, o rejeita, por ele não enxergar o seu lugar, por ser filho de uma lavadeira e de um pedreiro, e por ter um irmão tanoeiro, mas que fala francês.
Então, quando fui atrás das informações vi que os livros sobre Cruz e Sousa não me ofereceriam as respostas que eu desejava e precisava. O elo estava no caso em procurar os parentescos: nos filhos e nos netos dos amigos de Cruz e Sousa, no Oscar Rosas Neto de Nova Iguaçu, no Yan Demaria Boiteux ou no Ricardo Várzea da Zona Sul do Rio, entre outros. Nas entrelinhas dos documentos desprezados, dos documentos poucos lidos, das cartas esquecidas, dos diários. Era preciso olhar para tudo isso com outro olhar. E um fato que muito me chamou a atenção é que muitas fontes desprezadas remetiam para a revelação de um Cruz e Sousa identificado com as causas sociais, com a questão do negro, com o abolicionismo. Se ele era originário de uma região eminentemente branca, de cultura anglo-saxônica, educado nos padrões brancos (aderindo à ferramenta de dominação que era o domínio das letras e da cultura ocidental), nada mais justo que esse homem precisava embranquecer, distanciando-o sobretudo de suas origens, buscando em sua obra brechas para renegar a sua própria origem, até mesmo sua família, o seu passado, que não existe.
Depois de percorrer acervos e arquivos de cinco estados, percebi que uma grande injustiça se fazia, então, ao poeta, e essa injustiça tinha a ver com fato de ele ser negro e ter sido pobre. Era preciso reverter tudo isso, mas despindo-o das roupagens vestidas nele durante os últimos cem anos, como a de um negro que pinto o rosto de branco para clarear mais a pele. Sofreu desse mal Machado de Assis, cuja pecha recaiu mais pelo seu requinte, o que já não ocorreu com Lima Barreto, que não tem meia-língua nem pudor.
Quando eu era pequeno, meu pai, servidor público, gostava de adquirir enciclopédias. Olhando um dia uma dessas publicações percebi que um dos poetas lá apresentado era o poeta negro Cruz e Sousa. Indaguei da minha mãe se havia poetas negros, e ela disse para mim ingenuamente que se estava no livro era porque existia. Passados os anos, descobri que esse poeta negro era extraordinário e morreu jovem e pobre, deixou descendência (que conheci numerosa) e que morava numa casinha no bairro do Encantado e que fora demolida em 1984. A partir daí vi que minha missão, de certa forma, era resgatar a memória desse poeta, que vinha apenas sendo tratado de forma maliciosa, enviesada, ou como se trata todo o negro nesse país, pelo lado exótico e pela pecha de coitado, de submisso. Uma bela maneira de justificar que a sua ascensão é resultado da "bondade" de um militar, não de si próprio ou de sua família. É a cegueira exegética ideológica, nada mais.

Você comentou rapidamente que seu estudo quebra paradigmas, como na parte educacional. Isso se deve ao fato de que os pais de Cruz e Sousa, como você escreve, terem se preocupado em dar uma ótima educação ao filho?
ALVES: Exatamente. Todos os estudiosos (com exceção de Iaponan Soares) atestam que a educação de Cruz e Sousa é devida aos senhores de seus país: a senhora que não tinha filhos e ao militar que era bondoso. Ora, quando Cruz e Sousa era criança o "bondoso" militar mantinha seu pai como escravo, enquanto a mãe era forra. Quando o militar morreu o poeta era ainda um meninote, com cerca de nove anos. A senhora morreu quando ele tinha 13 para 14 anos, pobre, pensionada pelo governo, por ter sido esposa de um herói da guerra do Paraguai. Que educação esmerada é essa? Os documentos que encontramos mostram que o pai do poeta, um humilde pedreiro, desde sempre, correu atrás da educação dos filhos (Cruz e Sousa tinha um irmão mais novo). Documentos escritos a rodo provam isso amplamente. Bem, se existem documentos que comprovam este fato, por que até hoje ficam escrevendo e dizendo por aí que ele foi educado por brancos, de quem adotara inclusive nome, quando sabemos que o nome era uma forma de dizer, na verdade, a que família aquele escravo pertencia.
Quando falamos na quebra de paradigmas estamos nos referindo a esse ponto específico, que, além de corrigir uma injustiça, aproxima Cruz e Sousa de sua família, possibilitando-nos fazer uma releitura de sua obra, sob o ponto de vista racial, de quem não quer fugir de suas origens, mas estar cada vez mais ligado a ela. Isto é importante, por dois motivos: pelo aspecto pedagógico e pelo literário. A vida desse poeta serve de exemplo de abnegação para outros jovens aspirantes às letras ou às artes. A coragem de seguir em frente sem abandonar os seus é tão grandiosa como a de vencer uma batalha.

Outro paradigma que disse ter quebrado se refere à militância abolicionista. Fale-me um pouco disso?
ALVES: A militância abolicionista de Cruz e Sousa foi negada durante muitos anos. E eu me perguntava: como um poeta negro, que teve pais escravos, viveu no período da escravidão, não se preocupava com a questão racial? Mantenha aqui como eixo dessa explicação a forçação de barras para embranquecer Cruz e Sousa, afastando do que está tão evidente em sua obra: a cor, a raça, o credo abolicionista. Sua obra (até mesma a da fase madura) está cheia de referências sobre porões, oceanos, mares, dor, lágrimas, sangue, calabouços, navios, embarcações, noite, afras, núbias, negras, noite negra, amplidão, crianças negras etc.
Parece que Cruz e Sousa renega o passado? Em um livro de 1885, Cruz e Sousa ridiculariza a figura de um padre escravocrata, se referindo a ele como um "abutre de batina"; em outro texto prega sobre a castração de escravistas até ouvi-los urrar. São dados referenciais que nos remetem aos textos jornalísticos, satíricos, ficcionais. Há estados em que a participação dele é tão forte que o ovacionam, como é o caso da Bahia.
É preciso ler essa questão abolicionista sobre o ponto de vista de uma militância, não de uma estética, de um cânone. O pós-Abolição demarcou uma outra forma de pensar a vida brasileira, vista pelo viés da superação, que de certa forma arraigou ainda mais as seqüelas do racismo, pelo viés lombrosiano, muito difundido durante a primeira República, que demarcou então o estado-cidade, inoportunizando os acessos de meios aos negros (exigência de qualificação e estudos regulares para o trabalho, a chamada boa aparência, a aproximação com o local de trabalho e, sobretudo, referências, como o da figura de um fiador). Cruz e Sousa diz, com plena consciência, no texto "Emparedado", que como ele pode ser artista se ele vem de uma região desolada, tórrida e bárbara, gemente e dolorosa, "torvamente amamentada com o leite amargo e venenoso da Angústia!". Cruz e Sousa sabia a profundidade da sua dor. Seu papel era desbravar o caminhos para a próxima geração, com a cristalização da sua dor em arte.

Cruz e Sousa teve uma curta, mas intensíssima vida. Vê lances dramáticos nela?
ALVES: Não só dramáticos mas às vezes épicos, quixotestos. Às vezes ele assemelha-se ao "cavaleiro da triste figura", na concepção de Cervantes. Para um homem que viveu por 36 anos sem nunca ter gozado plenamente a felicidade, numa eterna angústia por galgar posições, de conquistar reconhecimento, por saber que é mais capacitado que outros que estão em situação melhor do que a dele, muitas vezes sem estudo e sem profissão. O drama da miséria, da loucura da mulher, da família numerosa, da moradia humilde, da doença, da tuberculose. Além de tudo a rejeição do meio, que não o aceita, que não o oportuniza, que não quer saber de sua arte. A tuberculose parece chegar como um lenitivo para aplacar uma vida de angústias.

No início do livro, observa que Cruz e Souza é dos poucos negros ilustres do século XIX a ser totalmente negro, quero dizer, não era mulato, como Machado, Bilac e outros. Algo que foi bastante discutido neste centenário de morte de Machado é o fato de que os negros alforriados, no século XIX, conseguiam obter uma ascensão social que hoje temos dificuldade de imaginar. Quais as particularidades do caso Cruz e Sousa?
ALVES: O século XIX foi atípico para os negros. Muitas gerações de negros despontam nesse período. No paisagismo, escultura e arquitetura, desponta a figura de Mestre Valentim (que morreu em 1813); na música Padre José Maurício Nunes Garcia; na editoração, Paula Brito (responsável por revelar Machado de Assis); na engenharia, André Rebouças e Teodoro Sampaio; na filosofia, Farias Brito, na política, Barão de Cotejipe (um dos homens mais influêntes do segundo reinado, várias vezes ministro, inclusive das Relações Exteriores, mas que era contra a abolição); na oratória, Torres Homem; no jornalismo, vários: José do Patrocínio, Alcindo Guanabara, Olavo Bilac, Ferreira de Araújo (fundador da Gazeta de Notícias); na presidência da República, Rodrigues Alves e Nilo Peçanha; na medicina Joaquim Cândido Soares de Meireles e Juliano Moreira; na advocacia, Evaristo de Moraes; no bispado, Dom Silvério Gomes Pimenta; no magistério, Hemetério dos Santos; na literatura, Machado de Assis, entre muitos outros.
Nesse contexto, o que destacamos em Cruz e Sousa é a particularidade senzalista (saído praticamente da senzala), não ter mescla de sangue europeu, talvez seja o caso único. Porque Luiz Gama (filho de negra com branco português), por exemplo, não se notabilizou como poeta, e sim como advogado, caso de Silva Alvarenga e de Gonçalves Crespo, e de outros. Isto, por mais que não pareça, incomodava a muita gente.

Quais são os destaques da exposição que abre na Biblioteca Nacional?

ALVES: Estamos fazendo uma mostra de documentos e peças. Além da obras originais, inauguradoras do simbolismo no Brasil, como os primeiros exemplares de "Missal" e "Broqueis" de 1893, a mostra tem também um livro que pertenceu ao poeta, de 1884, fotografias de família, como uma rara do filho do poeta e do irmão; certidões de casamento, nascimento e morte; publicações da época como jornais e revistas.

Algo mais a destaca na biografia que lança?
ALVES: Acho que um belo momento é quando derrubamos o mito de que Cruz e Sousa foi educado por brancos e não pelos pais, negros. Reproduzimos um documento primoroso onde uma autoridade da época diz que o pai tudo faz pela educação dos filhos. Outra parte que destaco é o banho de sabedoria que Cruz e Sousa dá no presidente da Província que, num exame oral em sala de aula, percebe que o jovem negro é o que se saiu melhor, e aí determina ao professor que aprove tão distinto aluno e reprove os demais; mais é sua relação humana, de respeito ao próximo, de asseio, de orgulho e ascensão próprias. Cito também a relação familiar e, sobretudo, sua militância abolicionista e a criação de uma escola literária, que foi o Simbolismo, que é mais do que ter um estilo, mas moldar o modo de escrever daquela forma, numa concepção revolucionária, que passa a ser seguida até mesmo no período modernista, que tem o mulato Mário de Andrade como seu principal fautor. O menos interessante, é perceber o descaso da sociedade, o racismo como elemento desafiador dos tempos, a ingratidão, a esperteza, a carestia de tudo e a falta de amor pela vida. E olha que eu estou falando do século XIX, não do XXI.

Por que Dante Negro?
ALVES: Em vida os amigos de Cruz e Sousa o cercavam e o protegiam dos ataques dos poderosos das letras. Cultivavam sua amizade como alguém que idolatrava um santo. Mas essas coisas eram feitas de modo a não criar uma atmosfera de gratuidade. Depois da morte de Cruz e Sousa, cada uma quis externar o modo de ver aquele homem que passou por ele tão rapidamente. Por exemplo, crítico e amigo Nestor Vítor chegou a ter um altar em casa, onde acendia velhas e rezava pela sua alma. Quando foi morar em Paris, levou consigo roupas e objetos para ter próximo de si uma recordação do amigo morto.
Cada um, como disse, tinha sua maneira. Começaram a aparecer, então, os epítetos: Cisne Negro, Alma Eleito, Diamante Negro, Negro Sublime, muitos e muitos. Nasceu também daí o Dante negro, numa alusão ao sofrimento infernal (na verdade, alusão à "Divina Comédia", de Dante Alighieri), porque os primeiros escritos biográficos saídos em jornais ou em livros (como é o caso de um livro intitulado "Fretana", tido como romance, do paraibano Carlos D. Fernandes) ressaltam, antes de mais nada, o grande sofrimento do poeta, agonia da morte lenta, a miséria, a doença minaz, a tuberculose, a morte. Daí o resgate do título que identificamos ser o que mais se aproxima do entendimento que queremos passar sobre esse grande homem e artista brasileiro.

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