Desaparecidos políticos (DHnet) e Relatos de Inês Etienne
Desaparecidos políticos
O fenômeno da detenção arbitrária ou seqüestro, seguido do desaparecimento da vitima, se propagou rapidamente na América Latina durante as últimas décadas, em que a maioria dos países foi governada sob a Doutrina de Segurança Nacional.
A condição de desaparecido corresponde ao estágio maior do grau de repressão política em um dado pais. Isso porque impede, desde logo, a aplicação dos dispositivos legais estabelecidos em defesa da liberdade pessoal, da integridade física, da dignidade e da própria vida humana, o que constitui um confortável recurso, cada vez mais utilizado pela repressão.
O perseguido político, muitas vezes, para manter-se incólume, opta por viver na clandestinidade, longe do grupo comunitário a que pertence, sem contato com a família, e apenas com a esporádica ligação com sua agremiação política, também perseguida e obrigada a se manter clandestina.
Quando os órgãos de segurança conseguem deter uma pessoa nessas circunstâncias, desse fato não tomam conhecimento a sociedade, os tribunais, a família, os amigos e os advogados do preso.
Isso representa vantagem para os órgãos de repressão, que passam a exercer total poder sobre o preso, para torturá-lo e para exterminá-lo, quando lhes aprouver.
Quando se obtém a certeza da prisão, os organismos de segurança já eliminaram a vítima e já destruíram todos os vestígios que pudessem levar ao seu paradeiro.
A perpetuação do sofrimento, pela incerteza sobre o destino do ente querido, é uma prática de tortura muito mais cruel do que o mais criativo dos engenhos humanos de suplício.
No Brasil, alguns desaparecidos foram vistos em dependências oficiais ou clandestinas por outros presos que tiveram melhor sorte. Seus testemunhos constam nos processos analisados pelo Projeto BNM. E sobre os desaparecidos, propriamente ditos, o que emanou
de resultado prático na pesquisa realizada, é a certeza de que eram pessoas procuradas pelos órgãos de repressão. Dificilmente os processos contêm algum tipo de informação que possa levar à descoberta de seus paradeiros. Isto porque esta forma de repressão pretende, de um lado, insinuar que as autoridades governamentais não seriam responsáveis por esses fatos criminosos, e, por outro, permitir aos serviços de inteligência maior mobilidade e desenvoltura, sem provocar nenhuma intervenção, quer do Judiciário, quer da imprensa, quer das famílias e dos advogados.
O único fato que se sabe sobre um desaparecido é que foi detido por organismos de segurança. O mais se baseia em hipóteses. A vitima quase certamente foi objeto de assassinato impune, sendo enterrada em cemitério clandestino, sob nome falso, geralmente à noite e na qualidade de indigente.
No Brasil, existem cerca de 125 cidadãos desaparecidos por motivação política. Os movimentos de anistia e familiares lograram encontrar alguns deles, sempre enterrados sob falsas identidades, pela policia.
Dentre os casos mais significativos, o Projeto BNM destacou alguns exemplares, como o de Mariano Joaquim da Silva, secretário do Sindicato Rural de Timbaúba, Pernambuco, em 1964, e membro do Secretariado Nacional das Ligas Camponesas, lavrador e sapateiro, que foi preso no dia 1º de maio de 1971, em Recife, sob a acusação de ser dirigente da VAR-Palmares. O órgão que efetuou sua prisão foi o DOI-CODI-I Exército, tendo sido levado para o Rio de Janeiro.
Posteriormente, foi transferido para local clandestino de repressão em Petrópolis (“Casa da Morte”), onde foi visto por Inês Etienne Romeu.
Em seu relatório, Inês afirma ter visto e falado várias vezes com Mariano, que se identificou, tendo-lhe relatado que ali chegara no dia 2 de maio, proveniente de Recife, onde tinha sido preso.
Inês foi inclusive “acareada” com Mariano Joaquim da Silva, perante os torturadores, que queriam, por toda a sorte, saber se ambos já se conheciam. Inês relata ter tido contato com Mariano até o dia 31 de maio, quando na madrugada ouviu uma movimentação estranha e percebeu que ele estava sendo removido. No dia seguinte, indagou a seus carcereiros sobre Mariano, os quais lhe disseram que ele havia sido transferido para o quartel do Exército no Rio de Janeiro. Desde então, nada mais se soube de Mariano.
Na residência que serviu como centro clandestino de torturas, em Petrópolis, referida no capitulo 19, Inês Etienne Romeu viu pessoas que são consideradas “desaparecidas” e ouviu referências sobre outras:
1. Quando fui levada para a casa de Petrópolis, lá já se encontrava um camponês nordestino, Mariano Joaquim da Silva, cognominado Loyola. Conversamos três vezes, duas na presença de nossos carcereiros e uma a sós. Mariano foi preso no dia primeiro ou dois de maio, em Pernambuco. Após sua prisão, permaneceu vinte e quatro horas no Recife, onde foi barbaramente torturado. Seu corpo estava em chagas. Em seguida, foi levado para aquele local, onde foi interrogado durante quatro dias ininterruptamente, sem dormir, sem comer e sem beber. Permaneceu na casa até o dia 31 de maio, fazendo todo o serviço doméstico, inclusive cortando lenha para a lareira. Dr. Teixeira disse-me, em princípio de julho, que Mariano fora executado porque pertencia ao Comando da VAR-Palmares, sendo considerado irrecuperável pelos agentes do Governo. Quando conversei a sós com Mariano, ele rnencionou a prisão de Carlos Alberto Soares de Freitas.
2. Dr. Pepe confirmou-me que seu grupo “executara” Carlos Alberto Soares de Freitas, por cuja prisão, ocorrida em fevereiro deste ano, fora responsável. Disse-me que seu grupo não se interessa em ter lideres presos e que todos os “cabeças” seriam sumariamente mortos, após interrogatórios. Contou ainda que Marilena Vilas Boas Pinto estivera também naquela casa e que fora, como Carlos Alberto Soares de Freitas, condenada à morte e executada.
3. Segundo ainda o Dr. Pepe, o ex-deputado Rubens B. Paiva teve o mesmo fim, embora não fosse intenção do grupo matá-lo. Só queriam que ele confessasse mas, no decorrer das torturas, Rubens Paiva morreu. A morte do ex-deputado foi considerada pelo Dr. Pepe como “uma mancada”.
4. Aluísio Palhano, ex-líder dos bancários do Rio de Janeiro, preso no dia seis de maio de 1971, foi conduzido para aquela casa no dia 13 do mesmo mês, onde ficou até o dia seguinte. Não o vi pessoalmente, mas Mariano Joaquim da Silva contou-me que presenciou sua chegada, dizendo-me que seu estado físico era deplorável. Ouvi, contudo, sua voz várias vezes, quando interrogado. Perguntei ao Dr. Pepe sobre ele, que me respondeu: “ele sumiu”.
5. Dr. Guilherme disse-me, antes do dia 15 de maio, que iriam prender o Ivan Mota Dias nesta data. Posteriormente, contou-me que Ivan havia sido executado por eles; já o Dr. Roberto disse-me que ele se encontrava no exterior. Entretanto, outros elementos subalternos confirmaram-me a morte de Ivan Mota Dias.
6. No mês de julho, estiveram na casa dois militantes da VPR e um da ALN. O primeiro penso ser Walter Ribeiro Novais, ex-salva-vidas de Copacabana. Márcio me afirmou que o mataram. Inclusive na época (oito a quatorze de julho de 1971), houve urna ruidosa comemoração, em virtude de sua morte. O segundo, é urna moça que acredito ser Heleni Guariba. Foi barbaramente torturada durante 3 dias, inclusive com choques elétricos na vagina, O terceiro é Paulo de Tarso Celestino da Silva, que foi torturado durante quarenta e oito horas por Dr. Roberto, Laecato, Dr. Guilherme, Dr. Teixeira, Zé Gomes e Camarão. Colocaram-no no pau-de-arara, deram-lhe choques elétricos, obrigaram-no a ingerir uma grande quantidade de sal. Durante muitas horas o ouvi suplicando por um pouco d’água.
7. No dia quatro de agosto, Laurindo chegou à casa e comunicou ao Dr. Bruno e Dr. César que José Raimundo da Costa havia sido preso numa barreira. Segundo me disse posteriormente Dr. Pepe, José Raimundo da Costa não foi torturado, pois no interrogatório disse que não sabia onde estava Lamarca e, se o soubesse, não o diria. Assim, José Raimundo da Costa foi morto vinte e quatro horas depois de sua prisão, num “tiroteio” na Av. Suburbana, no Rio de Janeiro.
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