Olhos Parados - Capítulo 13

13

Apareceram outros casos. O "mal de Brito" já se tornara uma constância nos noticiários. Sempre eram políticos ou então pessoas ligadas a movimentos de organização popular que eram acometidos pela doença. Começava a ser levantado o perfil do grupo de risco. Os sintomas pouco variavam, mas sempre aquela imobilidade e aqueles olhos parados eram o que dominava o quadro. Houve alguns casos  com pessoas que militavam em ONGs, e se a coisa era mesmo contagiosa como desconfiavam, o perigo estava se alastrando.
As pessoas afetadas foram sendo encaminhadas para hospitais especializados e ficaram proibidas de receber visita. A atenção já deixara de se fixar no senador que continuava sendo mencionado por ter o seu nome batizado a doença.
Sociólogos, filósofos, psicólogos, médicos começaram a desenvolver teorias e promover cursos e palestras analisando aquela nova epidemia que começava a paralisar boa parte de políticos, intelectuais e militantes. A repercussão internacional foi rápida e inevitável, da mesma forma que as respostas que vieram de outros países. Alguns da América do Sul, outros vindos da África e da Ásia, onde casos semelhantes vinham acontecendo. Cientistas desses continentes promoveram um simpósio com o tema e foi oficializado o termo “Mal de Brito” para denominar aquele estado catatônico que se espalhava pelo mundo.
Após um estudo detalhado de todos os casos ficou provado que o caso Brito Júnior, historicamente, fora o primeiro. É provável que ao longo das últimas décadas possa ter havido alguma outra ocorrência, mas, a partir do senador, o marco havia sido estabelecido. E por ser um marco, já quase um patrimônio nacional, lá estava ele, em um hospital de base militar, guardado a sete chaves. Pouquíssimos eram os que sabiam do seu paradeiro. E esses haviam sido escolhidos a dedo. Temeu-se que ele pudesse se transformar em alguma espécie de símbolo ou que qualquer coisa que lhe acontecesse influenciasse o povo e provocasse uma comoção nacional de dimensões incontroláveis. Daí o fato de ter sido tirado do caminho e da visibilidade das pessoas.
Seu olhar parado sonhava um outro tempo e a sua única enfermeira ia e vinha controlando o soro e os medicamentos. Às vezes, era ela quem desconfiava que eles o estivessem mantendo ali, daquele jeito, de propósito. Estaria mesmo a vida dele dependendo daqueles remédios? Ou seriam os próprios remédios que o dopavam, impedindo a reversão da doença? Mas afinal por que o manteriam vivo, daquela forma?
Uma coisa ela sabia: devia continuar ali. Era aquele o seu lugar, ao lado dele. Parece que toda sua vida tinha sido aquilo: zelar por ele. Talvez até mesmo o curso de enfermagem que fizera já fora algo pré-determinado. Mas o que será que o futuro reservava? Bem, isso não era coisa para se pensar. O futuro chegara e era daquele jeito. Ela, por uns instantes, pensava nessas coisas, enquanto fazia o seu trabalho. E ele? Onde estaria? Naqueles poucos momentos de solidão e intimidade que tinha com aquele homem aprendera a ver coisas que ninguém imaginava.
Os olhos estavam parados, aparentemente sem vida, sem reação. Mas ela aprendera a ver as modificações. Algo de muito forte acontecia por baixo daquela aparente imobilidade. Houve momentos em que parecia que ele ia dizer alguma coisa, ou talvez estivesse dizendo.
Era um homem sonhando de olhos abertos. Talvez fora algum susto que o enfeitiçou, mas no fundo, por trás daquela máscara de perplexidade, um mundo fluía. Ela tentava mergulhar e ir até lá, nas profundezas, e tocar toda aquela vida que se exilara.
O homem já havia comovido multidões com os seus discursos. Em todos os cantos do país por onde passara, deixara a semente da esperança. E agora, ali, abandonado, ia sendo esquecido e passava a ser apenas o nome de uma nova doença.
Ninguém jamais partilhara um momento tão íntimo com ele, só ela. Talvez nem mesmo sua ex-esposa, que por sinal não aparecera ou se interessara pelo caso. Casara-se com um ator da moda, que acabou trocando-a, mais tarde, pela atriz da moda. Aquela com a qual ele fazia o casal que na novela das oito, entre beijos e lágrimas, conquistava as atenções do país. Depois disso não se ouviu falar mais nela. Até o momento do episódio com o senador, quando foi procurada pela imprensa. Então estava casada com outro político influente e se recusou a dar qualquer depoimento sobre seu passado com o Brito Júnior.
Sem parentes, sem amigos que soubessem do seu paradeiro, uma vez que o seu caso passou a ser tratado como um problema de segurança nacional e, portanto, o acesso às informações foi totalmente negado a pessoas que não fossem da família. Era assim que tudo ficara.
O partido do senador começou a fazer injunções ao governo para recuperar o controle da situação. Mas havia interesses em jogo, negociações estavam sendo feitas para a aprovação de determinadas leis; cargos em ministérios entravam na pauta dessas negociações e a questão tornou-se especialmente delicada. Acabaram por vender para a opinião pública a versão do alto risco de contaminação e dos cuidados especiais que estavam sendo dedicados ao senador, que sob hipótese nenhuma poderia ser importunado. Ainda havia o fator agravante de ser a doença de origem desconhecida e estar sob pesquisa. A única pessoa que tinha contato com ele era a enfermeira.



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