Diário do escritor que não fui - 31 de outubro

Em setembro, com a primavera, veio a leitura pública que fizemos, eu e Pita, do livro "Meninos, eu conto" de Antônio Torres. Estava lá, com a esposa, Sônia, na plateia, o escritor premiado e já publicado e consagrado em várias edições pelo mundo. Antônio, que atualmente vive em Itaipava, é uma pessoa querida e admirada aqui por todos que o conhecem. Foi uma noite de alegrias, no Palácio Rio Negro.
Mas "como nem tudo são flores", a primavera também nos trouxe o espinho do fascismo que tomou conta da maioria de nosso povo, para a desgraça e, digo, tragédia mesmo, de nosso Brasil. As religiões neo-fundamentalistas, através de seus "pastores", usando o nome de "Deus", promoveram um festival de mentiras sobre o outro candidato e demonizaram o partido dos trabalhadores promovendo por expedientes ilícitos a ascensão do candidato fascista, cujas máximas eram um verdadeiro manual da barbárie. E outubro, com o pleito, tivemos a triste eleição do malfadado candidato que enganando a grande maioria, com a conivência de uma classe média perversa e de uma elite predatória, assumiu o poder e promete nos lançar em um atraso de mais de 50 anos. Após tantos anos de lutas por direitos e por uma sociedade menos desigual chegamos a este ponto, e agora, não mais por um golpe, mas pelo voto popular. A tecnologia e as redes sociais foram amplamente utilizadas para manipular as pessoas. O pior lado do ser humano foi potencializado e os preconceitos, o ódio e a violência foram insuflados. É desanimador para quem vem trabalhando há tantos anos com educação e cultura na perspectiva de maior civilidade, fraternidade e justiça...
Hoje, 31 de outubro, começaremos a entrar na reta final deste ano de 2018. Até então, conto ainda dois anos para me aposentar como professor, se as regras não forem mudadas por essa gentalha que assumiu com poderes ditatoriais, inclusive fazendo apologia de torturadores e ameaçando aqueles que pensam diferente deles.
(...)
Chegou a tarde. À minha cadeira, ao lado da janela que se abre para o jardinzinho, atrás de nossa casa, aqui no quarto dos fundos do segundo andar, continuo minha leitura de Machado de Assis. Um livro que sempre releio é o "Memorial de Aires". Descobrindo novos encantos na escrita do mestre, lá vou eu, pela tarde. Em meu computador duas abas abertas, uma aqui com o diário e outra com uma boa música que se mistura à calma deste meu exílio voluntário. Após tanta luta política e tantas decepções fujo desse deserto de insensatez e encontro o meu oásis de arte e cultura, bem próximo à natureza, que sempre nos cura, ao ser contemplada com a plena atenção.
Machado cria no conselheiro Aires um alter ego que nos vai  presenteando  profundidade de alma nos acontecimentos mais simples e isso, em um outro tempo, em um outro mundo bem mais pacífico que a realidade de nossos dias, neste século XXI, que paradoxalmente, nos lança quase à "Idade da Pedra".
A civilidade que Machado traz com as suas palavras, mais a música e o cenário da tarde que já vai esmaecendo é como um encantamento que se faz bálsamo para a alma.
O personagem, Conselheiro Aires, beira a minha idade, e, Machado, também, quando escreveu, já entrara na casa dos sessenta. Fácil então acontecer a empatia. Apesar de estarmos tão distantes no tempo.
Tenho lembrado, vez em quando, do menino que fui e das minhas descobertas e escolhas de caminhos. Ainda ontem, ouvindo uns jovens em uma praça conversando ruidosamente, tentando organizar algumas frases com as poucas palavras e a repetição exaustiva dos mesmos palavrões e chavões, lembrei-me de um dia, lá no longe dos tempos, em que eu, após a saída da escola, esperava o ônibus na fila, e minha atenção foi tomada pela passagem de dois rapazes. Parecia uma mágica. Eles conversavam com palavras bonitas e gentis, palavras que pareciam pensar e que de uma forma suave pareciam entender-se tão bem. E mais ainda, não gritavam, não faziam estardalhaço, mas seus rostos demonstravam felicidade e prazer pela vida. Naquele momento fiz uma escolha. Compreendi. Queria ser como eles. Eu, o menino pobre do "Morro do Canedo", queria um cotidiano diferente, uma vida mais civilizada. E, nos dias de hoje, ao que mais assisto, é exatamente o oposto disso. Parece que todos estão desesperados. Talvez por essa razão tenham escolhido um louco atormentado para ser o presidente do seu país.

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