Joaquins

 

Joaquins...

Capítulo 1

         Cresceu assim. Ouvindo sempre no rádio aventureiros, militares, piratas, generais e marechais dando seus golpes de estado. Era um continente invadido, escravizado. E ele, olhando no espelho, tentava entender seu futuro. Mas o espelho não conseguia responder direito. Estava opaco. Manchado. E como podia, foi crescendo Joaquim.

         Certo dia, lá pelos 9 anos, suspenderam as aulas. Caminhões cheios de soldados atravessavam a cidade. À época, chamaram de revolução, mas ele foi crescendo e entendendo que o verdadeiro nome era golpe. Lembrou dos noticiários que ouvira tantas vezes no rádio. Agora acontecia ali, em sua terra. A América do Norte desnorteava a outra América. Mas ele ainda não entendia o que se passava. Tão menino, ainda!­­­­­­­­­­­ Só que havia muitos outros Joaquins, já bem mais velhos, que também não faziam a menor ideia de toda aquela movimentação. Inventaram a escuridão. Importaram-na. E milhões de Joaquins engoliram trevas, anos e anos a fio.

         Foi nesse cenário que o nosso personagem viveu sua adolescência e juventude. Ele morava no alto de um morro de onde avistava a imensidão azul do céu e o verde do capim do pasto. Ali, o sol nascia mais cedo e a lua dos tantos verões fazia a festa das noites. Às vezes, ele deitava na grama do campinho e ficava a ver as nuvens. As variadas formas. Então foi descobrindo que tudo se formava e se dissolvia. Belezas e horrores, tudo se dissolvia. Como o seu amigo imaginário. Não sabia de onde surgira aquele nome. Mas sempre que brincava sozinho era ele o seu parceiro invisível, o seu ajudante, o protetor e companheiro inseparável. Kennedy. O nome que rapidamente aparecia em suas imaginárias reinações. Mas em algum momento, depois de tantas aventuras secretas vividas juntos, Joaquim descobriu aquele nome em um outro contexto. Seria mesmo? E o seu herói companheiro já não foi mais tão digno de confiança. Não haveria mais amigo imaginário. Começou a desconfiar do que ouvia. E, às vezes, até mesmo do que via.

         O morro tinha suas alegrias e reinações. Era a terra de Joaquim. Mas ele também viajava por uma outra galáxia. E lá costumava permanecer horas e horas. Um planeta diferente para o qual fora levado e que se tornou com o tempo a sua morada preferida. Foi aprendendo a língua daquele lugar. Também descobriu por lá uma nova forma de olhar as coisas a sua volta. Mas os outros Joaquinzinhos não entendiam nem aquele jeito que ele trazia lá do outro planeta e nem aquela linguagem que, vez em quando, deixava escapar. Alguns o achavam estranho. E davam, lá em sua pequena compreensão e em suas parcas palavras, as interpretações toscas e algumas até negativas e maldosas. Um dia ele descobriu isso. A partir daí, mudou seu comportamento. Tornou-se mais só. Passou a ouvir músicas e a ler livros. Começou a escrever na língua diferente que ia ensaiando. Alguns não entendiam, outros chamavam aquela linguagem e aquelas visões de: “poesia”. Coisa que, segundo eles, em plena era de brutalidade, na Terra dos Generalíssimos Marechalados, era uma estupidez desqualificável e imprestável. E Joaquim, cada vez mais e mais só, foi seguindo sua juventude, desconfiando do mundo, de tudo e de todos.

        

                                      Capítulo 2  - A solidão, o sono e o sonho

         Caminhava espremido entre corredores apertados e viajava nos ônibus lotados de sempre. Aqueles tempos fizeram com que as pessoas ficassem mais ainda divididas, desconfiadas, segregadas.

         Nas missas de domingo que assistia, levado pelos pais, o padre, em seus sermões, combatia as ideias, que, segundo ele, pregavam falsas promessas de igualdade, coisa que, segundo ele, não poderia existir, uma vez que todos eram diferentes. E que assim fora a vontade de Deus. Era preciso aceitar as “diferenças”, na verdade, desigualdades. Resignar-se, carregar a sua cruz para depois da morte ganhar a recompensa do paraíso. É claro que essas ideias eram costuradas com belas histórias, algumas palavras em latim, o medo, a culpa e uma ameaça velada de punição. As batinas de alguns padres estavam perfiladas às botinas do marechalado.

         Só muito tempo depois é que o Joaquim ficou sabendo de outros tipos de padres que estavam ao lado dos pobres e miseráveis que “penavam aqui na terra”. Esses faziam a distinção entre diferença e desigualdade.

         Joaquim não conseguia entender, nem aceitar aquele mundo no qual ia crescendo. Ele sonhava uma outra forma de ser. E isso aumentava mais um pouco a novela da sua solidão. Falar com as pessoas era difícil, para ele quase impossível, ainda mais que desenvolvera aquela nova linguagem. Só com ela conseguia expressar suas impressões e sentimentos mais profundos.

         Pois fora em uma noite de sono que aconteceu pela primeira vez. Um sonho. Ouviu uma música suave que parecia entrar por todo o corpo. Corria em suas veias. E seu corpo foi ficando leve, leve. Desprendendo-se. Sentiu-se levitando. Foi subindo, subindo. De alguma forma estranha, levado por aquela música, seu corpo transformado em notas da sinfonia, atravessou o teto da casa. Passou sem que nada o impedisse. Para ele não havia obstáculos e a força da gravidade desaparecera completamente. Flutuava pelo céu. A casa ficara lá embaixo. Em seu caminho, via luzes e mais luzes, das mais variadas cores. Nunca presenciara tamanho encantamento.

         Descobriu-se em um outro mundo. Foi pousando, pousando. O lugar, o entorno, tudo ali exalava calma. Ao mesmo tempo em que experimentava a sensação de uma surpreendente novidade, reconhecia algo muito familiar. A sensação era de total encontro. Ele com a sua alma chegando em casa. O ponto da perfeição.

         Do inédito de tudo, seus pensamentos foram encontrando uma outra forma de se estruturarem. Naqueles instantes começou a nascer dentro dele a nova linguagem que o acompanharia toda a vida. Seu segredo e sua trilha secreta.

         Mais uma vez a música, as luzes, e ele foi levado de volta para sua casa terrestre. Colou-se novamente ao corpo que dormia naquele pequeno quarto, no alto do morro. Mas jamais seria o mesmo.

         E muitas outras noites aconteceram. Viagens e mais viagens. Aos poucos foi sendo introduzido naquele outro mundo. Para além da Terra, para além da galáxia. Lá, foi conhecendo outras realidades e para descrevê-las e entendê-las também, foi se especializando na nova linguagem. Seres apareceram e se apresentaram a ele. Usavam a linguagem sem que emitissem um único som. Pelo menos, nos primeiros contatos. Eram pensamentos que adquiriam formas humanas e por uma espécie de telepatia exerciam uma comunicação e um diálogo com as ideias que surgiam em sua mente.

         Ele ainda não sabia por que, mas começava a entender que fora escolhido para aprender coisas que mais tarde fariam parte de uma missão maior que lhe seria revelada. Soube também, em uma de suas viagens, que existiam outros habitantes da Terra, que à semelhança dele, eram levados de tempos em tempos para lá e que, da mesma forma, em alguma ocasião, teriam de executar ações aqui em nosso planeta. Em momento algum, Joaquim se sentiu amedrontado ou desconfiado de que aquilo poderia ser uma coisa ruim para ele ou para quem quer que fosse. Em suas comunicações com os pensamentos-ideias-seres daquele mundo, só conseguia vislumbrar e perceber maravilhas indescritíveis para os moldes e paradigmas terrestres. Quando voltava de suas viagens, quando amanhecia, nem tudo ficava claro. Lembrava de alguns pontos, e outros ficavam como que adormecidos em seu inconsciente. Porém costumavam despertar em determinadas situações que ele enfrentava em seu cotidiano. Mas quando estava lá, tudo era claro e completo.

 

Capítulo 3 - Desaparecimentos no labirinto

       Sempre voltava para o seu morro, a sua Terra. Aos poucos, enquanto crescia, ia descobrindo que cada vez mais aquela não era mais sua, nem dos seus. Havia sido roubada, tomada e aprisionada pelos generais e marechais. Primeiro eles disseram que devolveriam a liberdade àquele lugar, mas o tempo foi passando e eles foram mostrando sua verdadeira face. Recrudesceram. Foram proibindo tudo. Torturavam, matavam e exilavam os que tentavam resistir aos seus tentáculos. Os pensadores eram apagados. As ideias eram incineradas, carbonizadas. Joaquim começou a sentir um cheiro de coisa queimada no ar. Os dias começaram a ficar esfumaçados. O cinza invadiu as cidades e ofuscou os olhos das pessoas. Mas os aparelhos de TV, então espalhados por todos os lugares, tocavam hinos, que eram cantados nas escolas, e propagandeavam o grande desenvolvimento pelo qual o país passava. As novelas e o futebol hipnotizavam, arrastavam com suas redes a emoção de todos. Enquanto isso, o oficialato mandava colar cartazes por todos os lugares com as fotos dos inimigos que precisavam ser perseguidos. Joaquim experimentava uma sensação estranha, um incômodo que perseguia os seus passos, uma adaga que pendulava sobre a sua cabeça. A sombra passou a segui-lo diuturnamente e a se envolver em seu crescimento.

         Estreitaram-se ruas e caminhos. Tudo virou um grande labirinto. Um labirinto de chumbo onde ecoavam o som das botas militares, frases de efeito hipnotizando e embrutecendo o povo, risos de escárnio e o grito dos torturados nos porões, rapidamente sufocados pelos gritos de gol nos estádios e pela tv que invadira e substituíra a vida real.

         A mulher passou desesperada pela rua. Seu sofrimento gritava. Chamava pelo filho que desaparecera. Perguntava a todos, implorava, chorava, praguejava. E continuava sua corrida. E não foi a única. Outras caminhavam a esmo, já sem forças, com máscaras de desesperança e desalento. Vez por outra passava um policial. Algumas fugiam. Outras suplicavam para que lhes dessem alguma notícia dos paradeiros dos filhos e filhas desaparecidas. Eram rechaçadas violentamente ou então ignoradas como se não existissem. De vez em quando surgia um oficial atravessando o caminho e, quando era abordado por alguma daquelas mães faziam-se de desentendidos e seguiam. Mas aos poucos elas foram também sumindo. Seus gritos e lamúrias foram silenciando e Joaquim já não conseguia vê-las. Perdeu-se a saída do labirinto.

         Cresceram muros e paredes distanciando ainda mais as pessoas. Outros Joaquins foram desaparecendo, mudando de identidade, trocando seus nomes por números. Houve os que se embruteceram, os que desistiram, os que se entregaram ao desaparecer cotidiano. Houve o desamor de todos, o corte dos laços, a armadura do medo e os antolhos da ignorância. As lágrimas silenciadas das mães que perderam seus filhos deixaram pegadas no caminho de Joaquim e por mais que ele estendesse seus braços e acenasse, não conseguia unir as pessoas que já nada ouviam ou viam, a não ser uma cantilena estúpida produzida pelo marechalado e patrocinada pelo império do norte.

         Apesar de tudo, ele foi sendo introduzido naquela linguagem que lhe trazia outras certezas. Houve muitas noites em que viajou levado para aquele mundo onde se redescobria.

        

 Capítulo 4 – Sombras

         As palavras e pensamentos proibidos sumiram. Joaquim começara a escrever um jornalzinho na escola onde fazia o 2º grau; e ele e sua equipe foram ameaçados de expulsão. Suas músicas eram censuradas e os festivais estudantis foram escasseando. A juventude foi escasseando. A vida foi escasseando. Por algum motivo desconhecido perdera também o contato com aquele mundo que durante um tempo fora seu oásis de calma e sabedoria. Os pesadelos do cotidiano tomaram o lugar dos sonhos e dos voos. Nas ruas, dos outros Joaquins, restaram apenas sombras. O medo amordaçara a alegria. Mas a grande maioria seguia na hipnose, era iludida pelos noticiários ufanistas que propagandeavam os grandes avanços pelos quais o país passava.

         Fora do morro, na cidade, não havia muito espaço para alguém de sua origem. Apesar de tudo, ele não perdera aquela linguagem que desde cedo experimentara. Então ele via, longe das sombras, claridades e regiões que muitos sequer sonhavam. Joaquim viajava para além de sua classe, para além de todas as classes, para um outro mundo que lhe fora mostrado. Costumava voltar os olhos para o movimento das nuvens no céu e ver as histórias que as nuvens, com suas imagens, montavam e desmontavam. Então corria para o seu quartinho e com o lápis e o caderninho ia construindo seu diário das nuvens, suas histórias de luzes e sombras. Quando terminava de escrever sentia um alívio imenso. Aquela reconstrução através das palavras de sua nova linguagem era como o alimento que o enchia de energia para enfrentar a luta cotidiana contra a escuridão. Também aprendia com a sua própria sombra e com o terror daqueles tempos. O mal dividia os homens, transformava-os em ilhas. Mas houve um dia, já passado bastante tempo, em que Joaquim percebeu nos olhos das pessoas o elo que unia tudo e todos, mas essa é uma outra história que mais tarde saberemos.

 

Capítulo 5 - A noite dos isqueiros 

Estranho. Excluído. Esquisito. Estrangeiro de si mesmo. Incompreendido por uns, rejeitado por outros. Nos embates com a sombra, sofreu duas derrotas que quase o levaram embora de vez. Mas ele voltou. Sempre voltava. Desde que se descobrira partido em dois, a missão maior da sua vida passou a ser a busca da unidade. Idas e vindas, voos e recaídas. Assim foi crescendo, amadurecendo a duras penas. Os trabalhos foram muitos. A luta pela sobrevivência. Joaquim ensimesmou-se. Havia nele a impressão de que os outros quase sempre sabiam mais que ele. As surpresas do tempo foram ensinando em seus passos e descompassos que a coisa não era bem assim que funcionava. Começou a perceber o significado de palavras como arrogância, preconceito, cinismo, dissimulação. Então, seus olhos que por um tempo andaram olhando para o chão, buscando algum sentido para sua vida, foram subindo em busca de horizontes. Suas palavras foram vindo à tona e chegaram ao ponto de voar em gritos de revolta. Ali estava ele e outros, e muitos Joaquins bradando por liberdade, pela volta dos exilados, pelo fim das torturas e mortes, pelo direito de escolher e definir seus destinos. Era uma passeata que os levou até arquibancadas lotadas, não para a hipnose dos gritos de gol, mas para a luta que irmanava todos aqueles Joaquins e Joaquinas. E ali, com o início de uma noite de luz, com os tantos isqueiros acesos iniciava-se um novo espetáculo. Sorrisos e lágrimas se encontravam após tantos anos de vozes sufocadas. Então Joaquim percebeu o sinal. E, à noite, em sua casa, quando adormecia, eles voltaram e o levaram para aquele lugar novamente. E ele compreendeu que o tempo sombrio fora o seu aprendizado, a luta que precisava ter sido travada. Agora havia um país para ser construído, um pássaro que precisava alçar voo das cinzas de tantos anos de tristezas e repressão. Mas muito ainda viria a acontecer. Os poderes insistiriam em escravizar todas e todos os Joaquins e Joaquinas.

Capítulo 6 - Pandemia e pandemônio

A noite dos isqueiros, das luzes que iluminavam esperanças, ficou na memória de Joaquim e de tantos Joaquins irmanados naquele sonho de voltar a ter voz. Ainda não fora daquela vez. Os generalíssimos marechalados deram um jeito de estrangular o canto que iniciava seus primeiros tons. Com o tempo fingiram ir saindo de cena. Mas inventaram seu teatro de fantoches, trouxeram seus bonecos para o palco e, dos bastidores manietavam tudo. Os crimes da sombra daqueles tempos foram anistiados. E mais tarde os carrascos foram elevados a heróis e alguns passaram a ter os seus nomes eternizados em nomes de praças e ruas...

Alguns anos se passaram, o país que se curvara voltou a buscar um novo jeito de se levantar e redefinir seus passos. Mas os herdeiros e viúvas do marechalado continuaram corroendo as instituições, e, à semelhança dos coronéis ancestrais, consideravam-se os donos do país. Dessa forma, com o apoio de uma parcela predatória dos detentores do poder econômico, voltaram ao poder através de golpes sucessivos e expedientes criminosos. A catástrofe social subiu ao poder elevando como mandatário-mor um ex-capitão truculento e sua família de meliantes. Ministérios e cargos, os mais variados, foram distribuídos entre militares oportunistas que se foram corrompendo e deixando claro suas péssimas índoles, através de mazelas e desrespeitos à própria constituição que deveriam respeitar e defender. Paralela a essa catástrofe, outra tragédia sanitária avolumava-se pelo mundo, uma pandemia que se alastrou matando milhões de pessoas. E o país de Joaquim sofreu com os dois terríveis males. Muitos outros Joaquins e Joaquinas pereceram por falta de tratamento e prevenção, uma vez que o tal do "capitão" negava o tempo todo as verdadeiras dimensões do problema.

Capítulo 7 - Nuvens de trevas



 

        

        

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