Olhos Parados Capítulo 14

                                            Olhos Parados  - Capítulo 14
         Quantos pensamentos, quantas ideias já haviam corrido o mundo!
     Ali, nos livros, José Carlos se expandia, ora ficando perplexo, ora maravilhado. Mas sempre mobilizado.
       O mundo era grande e por ele já haviam passado grandes homens. Mas o mundo não era único. Os homens o haviam criado e recriado muitas vezes. Eram muitos os mundos. Alguns em plena guerra. Uns explorando outros, roubando-lhes a seiva, deixando-os muitas vezes em total estado de miséria para a maioria de sua população. O planeta vinha sendo por demais dividido e o homem, pela ganância que atravessava a História, tornara-se um dos piores predadores.
        Esses conceitos iam aos poucos sendo assimilados pelo jovem. Ele olhava para os lados e via o Morro da Cachaça, com todas as suas carências. Via a dureza da vida de todos ali. Havia um desconcerto muito grande.
         O menino já não era o mesmo, tornava-se um daqueles cuja missão era simples e modesta – mudar o mundo – apenas isto. Primeiro sentiu essas coisas na mais absoluta solidão e depois partiu na aventura de encontrar os seus iguais. Os outros cavaleiros que porventura tivessem a mesma causa. Com certeza deveria haver em algum lugar outros como ele. Na escola, começou a prestar atenção nos colegas. Quem poderia sentir algo parecido com aquilo que ele experimentava no seu íntimo? Com quem dividir a sua revolta e o seu sonho? Mas a verdade é que os outros garotos ainda não haviam despertado para aquelas ideias. Ou se algum havia, escondia tão bem que se tornara invisível.
        José Carlos, certa vez, aproximou-se de um grupo de uma série mais adiantada que a sua e tentou participar de uma conversa, mas foi rapidamente rechaçado pela arrogância dos mais velhos que já se sentiam poderosos e maduros demais para aguentar a conversa de um pirralho, que ainda por cima pretendia discutir com eles de igual para igual.
        A arrogância, essa era uma das inimigas que ele ainda iria combater, e muitas vezes mais. Qualquer qualificação ou posto que as pessoas atingiam já era o suficiente para torná-las arrogantes. O pobre sente isso ferindo-o desde cedo, pois tem que conviver com a estupidez e a ignorância de quase toda uma sociedade que o olha como ser inferior. Essa arrogância se manifesta, às vezes, com rispidez e violência; às vezes, com uma falsa compaixão que não passa de hipocrisia dos que se acham melhores e fazem pequenas concessões aos que, no fundo, para eles, são “o resto do mundo”. Essa era uma forma deles escamotearem sua má consciência.
       Outra coisa que deixou o José Carlos indignado foi o falso sorriso das vendedoras. Coisa que ele descobriu na seção de maquiagem das Lojas Americanas. Sua mente e seu coração fotografaram para nunca mais esquecer. A moça, toda maquiada, sorria para a freguesa e bastou que a mulher virasse as costas para que aquele sorriso desaparecesse instantaneamente dando lugar a uma expressão fechada e estranha. Talvez refletindo todo o seu desconforto e a sua chateação. Mas logo a seguir apareceu outra freguesa e a moça rapidamente assumiu o mesmo sorriso de antes. José Carlos, o menino do ginásio, e depois, do 2º grau, ficou muito impressionado com aquilo. Como as pessoas podiam ser daquele jeito? Era certo que aquilo ele não queria para sua vida.
         Prestava atenção nas conversas das pessoas e descobriu também que havia uma espécie de texto decorado que ficavam uns repetindo para os outros. Quase ninguém falava nada de novo. Eram fórmulas, clichês em eterna repetição. Ninguém percebia aquela prisão, aquela trama onde estavam enredados. Os gestos, o ritmo das falas, as frases feitas, as respostas programadas, tudo era uma rede a aprisionar a grande aventura de viver. Era preciso encontrar outro modo de se mover para escapar daquela armadilha de linguagem na qual os homens caíam.
      E José Carlos lembrou do Sabão. Talvez fosse isso o que na maioria das vezes o deixava profundamente irritado com as pessoas, quando se comportavam de determinada forma ou quando faziam as mesmas e inócuas afirmações. Por isso tinha sido Sabão, o sábio, e ao mesmo tempo aquele que passava o “sabão”, que se irritava por razões que só ele mesmo sabia. Daí, muitos o evitarem.
         Buscando uma outra comunicação com o mundo, algo que fosse mais eficiente, o garoto começou a desenvolver a busca da expressão. Precisava dizer aquelas coisas que via e percebia. Precisava se expressar verdadeiramente. E como fosse tão difícil encontrar pessoas com quem conseguisse falar, conversar sem aquela farsa, começou a escrever.
         Mais uma vez ele entendeu os motivos do Sabão. Talvez – ele pensava – Sabão também tivesse visto nele essa questão e por isso tivesse construído aquela ponte entre eles. Era possível. Agora ele é quem tinha os seus cadernos com as anotações sobre o que lia e concluía. Seu pensamento começava a encontrar suas primeiras formulações.
         Desde aquela noite no pasto, ele e Catinha já quase não se viam mais. Ela e o namorado continuavam uma relação cheia de idas e vindas, brigas e reconciliações. José Carlos aprendera a apreciar o encanto das mulheres. Apaixonava-se frequentemente. Uma de suas últimas paixões era a professora de História. Como ele escrevia bons comentários, ela se interessou por ele e por sua sensibilidade. Era uma mulher exótica, diferente dos outros professores. Às vezes, os dois ficavam conversando após a aula. Ela parecia ter percebido que ele se sentia só e com necessidade de se comunicar, de conversar coisas menos banais do que os outros alunos conversavam em suas brincadeiras joviais. Também descobrira que ele possuía uma visão especial da matéria e, ainda tão jovem, já lera um bocado de livros e determinados autores que raramente algum aluno daquela idade já havia lido. Ela, jovem professora, recém formada, iniciava na profissão ao mesmo tempo em que preparava sua tese de mestrado. Nas suas poucas e rápidas conversas iniciais ela começou a falar com ele sobre sua tese e ele cada vez interessava-se mais. Na verdade a tese dela era sobre a história de comunidades periféricas fazendo um paralelo com a história da cidade e do país, na última década do século XX.
         Ele começou a contar para ela as histórias do Morro da Cachaça e dos cadernos do Sabão. Aquilo acabou dando uma nova direção à tese da professora. Os dois passaram a ter conversas mais frequentes e mais longas. Ele se ofereceu para ajudá-la com a tese. Clio tornou-se amiga dele e para desenvolver o seu trabalho começou a frequentar o Morro da Cachaça, entrevistando pessoas e anotando detalhes. Às vezes, os dois liam juntos os cadernos do Sabão. Às vezes comentavam e iam colocando ordem nas anotações esparsas que ele deixara dentro e fora dos livros. José Carlos encantava-se cada vez mais com a inteligência e a cultura dela. A essa altura ele estava com 17 anos de idade e ela fizera 22 anos.
         Bem, o fato de Clio ser uma linda mulher contribuía bastante para o fascínio que dominara o jovem. Muito do que antes ele havia lido e não conseguira entender, agora, com a ajuda dela, tornava-se claro. Por sua vez, ela também, com os relatos e esclarecimentos dele sobre o lugar em que vivia, ganhava um novo fôlego para a sua tese.
          Ela chegava a pensar que todos aqueles textos do velho homem do morro tivessem sido escritos para que um dia fossem achados por ela. Era um delírio secreto ao qual ela não conseguia resistir. Clio percebia os sentimentos que o José Carlos ia alimentando por ela e com muita habilidade ia conduzindo a relação sem que as coisas se complicassem. Ele já definira seus próximos passos, faria a Faculdade de História e já estendia os seus objetivos para um mestrado em Sociologia. Quando comunicou isso oficialmente para ela, os dois resolveram dar-se um descanso merecido e marcaram uma saída no fim de semana. Precisavam comemorar. Ainda mais que a tese estava concluída e seria defendida nos próximos dias. Clio disse para ele que também teria uma surpresa quando se encontrassem no sábado.
          Em casa, ele remexia nos seus escritos e de novo foi ler aquelas notas que tomara da mitologia, sobre o nome dela. Desde que a conhecera, a sonoridade daquela palavra havia possuído um encanto especial: Clio... Parecia um silvo, um chamado e ao mesmo tempo lhe soava como o som de um encontro. Achou os papéis e foi relendo o que anotara.
        Clio, uma das 9 musas criadas por Zeus, a pedido dos deuses, para que existissem divindades capazes de cantar a vitória dos Olímpicos sobre os Titãs. Foram nove as noites que Zeus partilhou com Mnemósina, a personificação da memória, e para cada uma dessas noites, após o tempo devido, nasceu uma musa. As cantoras divinas alegrando as deusas e inspirando os homens: Calíope, para a poesia épica; Clio, para a história; Polímnia, para a retórica; Euterpe, para a música; Terpsícore, para a dança; Érato, para a lírica do coral; Melpômene, para a tragédia; Tália, para a comédia e Urânia, para a astronomia. A palavra grega “mûsa” está associada à memória, mas também à fixação a uma idéia e ao sentido do aprendizado de uma arte. 
          A velha mitologia e os deuses gregos vieram tocar-lhe o destino. Trouxeram-lhe uma das musas e o colocaram em contato direto com ela. Depois de tê-la conhecido, José Carlos foi pesquisar o mundo da mitologia grega e daí foi refazendo o caminho da cultura ocidental, seguindo a filosofia e a ciência. O fato é que chegara ali, ajudando a professora em sua tese que se concluía. Agora aguardava ansiosamente a chegada do sábado e o prometido encontro. Eles que sempre estiveram juntos durante aquele ano e, no entanto, para ele parecia ser a primeira vez. Seria o seu presente de aniversário... Ela nem sabia que exatamente naquele dia ele estaria completando 18 anos.

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