Olhos Parados - Capítulo 19

19 Quando Cátia saíra, naquela tarde, ao fechar a porta, não viu o que se passou logo depois. O homem dos olhos parados teve um tremor e em seguida fechou os olhos. Poderia ter sido a morte, mas não foi. Apenas adormeceu. Se ela estivesse ali, tudo tomaria uma outra direção. Ninguém viu aquilo. Depois de tanto tempo, os olhos que permaneceram abertos e parados agora fecharam. Eles sonhavam. Parece que o tempo todo haviam sonhado, depois do susto, um sonho que não terminava.
A história de um homem ia passando como um filme, cenas iam e vinham. Misturavam-se. Palavras ficavam ecoando. Cenários ora se iluminavam, ora empalideciam. Dias e noites. Claros e escuros. Um menino corria pelo campo, pelo pasto imenso. Noites se enchiam de estrelas, nuvens dançavam em um céu muito azul que emoldurava os dias. Murmúrios, vozes. A mãe chamando o menino. Uma máquina de costura trabalhando incessantemente. A buzina de um ônibus. Um herói americano montado em seu cavalo. Uma eterna luta para a libertação. Um bar cheio de rostos e vozes que cantavam. “Ela é tão rica e eu tão pobre, eu sou plebeu e ela é nobre, não vale a pena sonhar...” Não vale a pena sonhar...sonhar... Homens de colarinho branco falando, falando, sorrindo e ameaçando. Um menino crescendo. Uma ladeira entre bambus. A bola de futebol pipocando no campo. Uma velhinha carregando feixes de lenha e depois enchendo uma garrafinha de cachaça no botequim. Homens brigando na rua. A polícia prendendo pessoas. Jovens sendo torturados. Uma moça linda com um livro nas mãos acenando do aeroporto. Novamente o bar e um velho com o mesmo livro que estava nas mãos da moça. Uma senhora indo de casa em casa carregando desenhos do seu filho. Desenhos de um presidiário. Pessoas recolhendo dinheiro para a senhora. E noites. E dias. E o menino crescendo. Subindo por um morro cada vez mais longe, longe, longe...
E o homem seguia sonhando uma vida em fragmentos. Quem seriam aquelas pessoas? O que era aquilo tudo?
O menino, dentro do sonho, continuava crescendo, ia despertando para os seus amores, descobrindo o mundo à sua volta, chorando suas primeiras lágrimas e inaugurando o gosto da felicidade. O homem sonhava um menino sonhando dentro dele. E eles iam crescendo juntos. Agora era o jovem, o universitário. Os novos temas que a História lhe apresentava, e a política estudantil.
Viu-se envolvido em lutas de poder dentro da universidade, chapas de diretório em disputa, as diferentes correntes. E, de repente, ele começa a descobrir que apesar de todos os ideais, da vontade da mudança que movia os seus companheiros, eles já reproduziam as mesmas estratégias e os mesmos modelos da política oficial do país. O jovem José Carlos passou a questionar até mesmo os companheiros de chapa. Daquela forma, com aquele comportamento, a causa já começava perdida. A velha tese de que os fins justificam os meios não podia mais ser posta em prática, uma vez que os meios já eram fins. A ação já caracterizava uma postura. Não podia concordar com agir de uma forma sub-reptícia e maquiavélica para depois alcançar avanços positivos. E a transparência? E a coerência? Se ele aceitasse partir do pressuposto de que qualquer ação era justificada em nome de uma boa causa, correria o risco de perder definitivamente de vista a boa causa e enredar-se nos percalços do caminho, caindo nas malhas de uma estrutura viciada e de um modelo ultrapassado que nada mais fazia do que perpetuar a injustiça social que ele conhecia muito bem. Quando o vale-tudo entra como lei da competição, então já estamos entregues aos braços do velho modelo. Aí toda a corrupção encontra o terreno fértil para vicejar. Não, o rapaz não podia comungar com aquela prática. Criaram-se os conflitos, ouviu muitas críticas e se envolveu em intensos debates. Foi se tornando uma voz isolada, acusado de ingênuo e outros adjetivos mais cruéis dentro do jargão oficial daquela política que combatia.
 A verdade é que o seu isolamento das correntes já consagradas na política estudantil, acabou por lhe proporcionar uma autonomia e liberdade de movimentos que o levaram a expandir o seu raio de ação e a elevar a sua voz em direção à maioria dos universitários. Trazia uma fala transparente e objetiva, não tinha compromissos com o ideário de nenhuma sigla partidária, mas todos reconheciam em seu pensamento e sua fala a força da verdade e a indignação com a injustiça. Era uma voz da cidadania que se levantava em meio à juventude universitária. E essa voz vinha do Morro da Cachaça, com tudo o que isso pudesse significar. Era uma voz que já chorara a morte do Sabão, que já cantara nas noites do botequim, acompanhando os malandros e seresteiros. Uma voz que já gemera no alto do pasto, nos braços de Catinha e que também gozara os prazeres de Clio, sua musa. Era uma voz que começara a balbuciar seus primeiros cantos quando lera a história do Simon Bolívar.
Agora, ali, no sonho de um homem, aquele rapaz ganhara espaço, em um congresso da União Nacional dos Estudantes, para expressar suas ideias. E ele falou de educação pública, universidade, pesquisa e muitos outros problemas e soluções.
 Houve um silêncio grande durante a sua fala e logo depois emergiram gritos e aplausos. Conseguira. A voz que surgia no meio do povo era capaz de mobilizar corações e mentes para o trabalho da abertura de novos caminhos.
A voz não parou mais, encontrou outras vozes que foram seus ecos. Havia outros meninos e meninas que também cresceram em outros morros ou subúrbios. Havia outros corações que pulsavam com um ritmo parecido. Rostos e olhares que se cruzavam e se reconheciam na mesma causa. Os que conseguiram chegar até ali e queriam ir adiante. Os pobres que cruzaram aquele campo minado da injustiça e que começavam a pisar em um novo território. Heróis que ousaram, a duras penas, chegar até a Universidade e que, agora, se deparavam com novas armadilhas onde muitos começavam a cair. Entre esses jovens havia os que, como José Carlos, tinham um projeto. Um projeto que incluía muitos personagens e muitas histórias vividas. Aqueles rapazes e moças vindos do mundo da escassez e da dificuldade e que haviam conseguido ultrapassar fronteiras e limites tão demarcados aprenderam a importância da autoestima e a força invencível da perseverança .
 Neles, através dos seus olhos, o Brasil começava a se olhar com gosto e amor próprio. O verdadeiro Brasil, sem ufanismos ou entreguismo, um Brasil que buscava seu próprio caminho no aprendizado de uma tenacidade diuturna. Entre esses jovens apareciam outros cuja vida não fora tão difícil até então, mas que compreendiam a necessidade da mudança. Porque também sentiam a urgência da nova construção. Ali começava a se delinear um novo quadro para o país. Surgira o olho-d'água e ele começava a correr e se espraiar. Era um igarapé com vocação de oceano. O discurso ficara ecoando dentro do sonho do homem.
 Aquelas cartas que vinham da França já não chegavam mais. O jovem ganhava espaço na política estudantil, mas ainda não esquecera de sua musa, Clio, a deusa da História. Escrevera outros artigos que costumavam ser publicados no jornal da Universidade e no principal jornal de sua cidade. Mas, para ele, aquele recorte que já ia amarelecendo entre os guardados era o principal. Ali tudo começara. E o fato do nome dele aparecer ao lado do nome dela tinha um significado todo especial.
Com os seus artigos e o conhecimento que adquirira ficou fácil para ele arranjar uma aulas para lecionar em cursinhos. Prestou concurso público para as redes municipal e estadual. Logo no outro ano lá estava o professor Brito, cheio de aulas, transitando de ônibus em ônibus para cumprir sua extensa carga horária. O mestrado fora adiado por enquanto. Estava envolvido demais nos projetos das escolas onde lecionava. E acabou engajando-se no movimento por mais qualidade na escola pública. Transformou-se em um militante. Uniu os amigos da Universidade e alguns alunos seus do curso noturno e criaram um grupo de ação estudantil. O grupo conseguiu produzir peças teatrais, reuniu poetas que escreviam na periferia e até então não haviam conseguido publicação, e com eles fizeram apresentações, leituras, palestras e vários eventos. Conseguiram editar uma antologia e publicaram um livro com o relato de suas experiências.
 Tudo acontecia em uma velocidade muito grande. Havia uma urgência para os projetos dele. É como se precisasse recuperar o tempo perdido. O tempo que o país precisava resgatar. O tempo que os seus semelhantes, o seu povo, precisava reconquistar. Era preciso aproveitar cada segundo. Todos os momentos eram preciosos e possuíam a matéria bruta pronta para ser trabalhada e transformada no ouro dos alquimistas. Cada ideia, cada frase, cada percepção era motivo para novas problematizações e consequentes formulações.
 Democracia fora uma palavra cujo sentido se perdera na noite dos tempos e que agora despontava como a única solução. Essa coisa, que foi tantas vezes falada, mas nunca levada realmente a sério. Era esse segredo que começava a ser desvelado. Entre cinzas e mentiras, na poeira e no sangue coagulado da História, lá estava ela, ou o que restara dela. Mas ainda brilhava um cisco dourado entre aqueles cascalhos. E para transformar a matéria bruta no ouro filosofal era preciso ter pelo menos uma amostra daquele ouro. E existia. Portanto a transformação e o resgate seriam possíveis. Mesmo sendo um resgate que traria algo de absolutamente novo, pois agregaria conteúdos nunca vistos, nem experimentados. Era esse o processo. E uma vez começado não haveria mais de parar. Como vinha sendo desde que tudo começara.
A energia do menino José Carlos caminhava na transformação, transmutando-se em consciência. Desde os livros do Sabão, da história de Simon Bolívar, dos filósofos, da vida do Morro da Cachaça, das dificuldades do cotidiano pobre, tudo se unia naquele “cadinho” onde a transformação ia sendo ativada. Caíra o muro de Berlim, terminaram os anos da ditadura, o capitalismo estava em crise mais do que nunca, em todo o mundo. O cinismo pessimista e o ceticismo irresponsável ganhavam voz nos “scholars” e críticos que ocupavam a mídia. Mas, enquanto isso, um povo ia ampliando os territórios de sua consciência. Se por um lado, a violência atingira os limites de quase uma guerra civil, por outro lado, vozes se levantavam nas músicas, nos poemas, nas reuniões em subúrbios e morros, por toda a periferia.
Paralela à barbárie, delineava-se uma nova estrada de civilidade, um novo caminho para uma outra forma de caminhar. A “tal” democracia, tantas vezes mencionada, até pelos mais cruéis ditadores, adquirira agora a força da reivindicação na práxis do cotidiano. A exclusão chegara às raias do insuportável.
Foi nesse contexto que do Morro da Cachaça, à semelhança de outros morros, criou-se o MPC, Movimento pelas Culturas. E o Zé Carlos e seus amigos conseguiram criar o grupo de teatro, com cursos permanentes, leituras dramatizadas, apresentação de peças teatrais criadas pelas comunidades que iam aderindo ao movimento. Também foi criado um grupo de dança, ao qual veio juntar-se um coreógrafo famoso, o que só fizera potencializar ainda mais o movimento. Criou-se no Morro da Cachaça uma Escola Livre através do trabalho voluntário. Tanto os grupos de teatro como o de dança e até as aulas da Escola Livre passaram a funcionar itinerantes. Criou-se entre as comunidades uma rede interativa. Os núcleos do MPC foram multiplicando-se. Muitos artistas e intelectuais sentiram-se atraídos para o MPC e se estabeleceu um diálogo através do qual começaram a ser produzidas várias modificações no cenário cultural e social da cidade. Outras cidades começaram a absorver a experiência e colocá-la em prática.
Em meio a todos esses acontecimentos, até para que o movimento ganhasse mais voz e influência, José Carlos foi convencido pelos amigos a concorrer às eleições, para uma vaga na Câmara Municipal.
E no sonho do homem, o rapaz foi amadurecendo e sua carreira ganhando dimensões surpreendentes. Era como um trem-bala, um foguete, que uma vez disparado não haveria mais como ser contido.
Vereador. Deputado. E senador...

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