Eu e o escrevinhador

Não sei nem como foi que o conheci direito. E como com aquele outro, que ele tanto admira na sua mais completa falta de admiração, foi um acaso qualquer que nos atropelou aí, por um desses caminhos toscos da vida. Quase não falava. E chegamos mesmo a nos encontrar algumas vezes para compartilhar dos nossos silêncios cansados. Um dia, por inspiração do outro, transformou-se ele também, de sombra a escrevinhador, como se auto intitulava. Sua sina encontrara uma religião e uma filosofia, em uma não religião nem filosofia. Um livro e um autor fictício deram-lhe um dessentido na vida. Bernardo Soares e o seu "Livro do Desassossego". Várias vezes o escrevinhador trazia-me trechos de sua antibíblia. Ainda ontem, deixou-me essa confissão do outro e prometeu escrevinhar-me algo sobre esse trecho do seu desidolatrado e desassossegado ajudante de guarda-livros.

"Pedi tão pouco à vida e esse mesmo pouco a vida me negou. Uma réstia de parte do sol, um campo (...), um bocado de sossego com um bocado de pão, não me pesar muito o conhecer que existo, e não exigir nada dos outros nem exigirem eles nada de mim. Isso mesmo me foi negado, como quem nega a sombra não por falta de boa alma mas para não ter que desabotoar o casaco. (...)"
O escrevinhador-ledor, após me apresentar essa passagem do seu Bernardo, disse-me já ter algo que escrevinhar e partiu em uma tarde meio alheia a tudo e todos. Levantei-me do banco, algum tempo depois da sua partida. Talvez amanhã nos encontremos novamente...

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