Olhos Parados - Capítulo 17

                                                                              17
     Quanto mais o rosto dele ia se transformando, a sensação que ela experimentava era de reconhecimento e familiaridade. Dias se passaram desde que aquela metamorfose começara. Cada vez havia menos gente por ali. A vigilância, pelo que ela percebia, estava ficando mais relaxada. Já não davam tanta importância para ele.
     Havia uma nova mania nacional. A principal rede de televisão do país lançara um “reality show”. Um grupo de pessoas era colocado em uma casa, e jogos e situações eram montadas para testar a resistência dos que ali participavam. O vencedor do jogo seria o último a permanecer na casa. O povo acompanhava as intrigas e a intimidade dos moradores da casa. A cada semana, um era excluído através do voto dos outros e dos telespectadores, que se manifestavam por telefonemas e mensagens eletrônicas. Montagens criadas pela direção do programa eram colocadas no ar e as pessoas tinham a ilusão de estar acompanhando o dia a dia da casa. As câmeras filmavam as várias dependências do local, incluindo quarto e box de banheiro. O voyeurismo e a bisbilhotice tornaram-se institucionalizados a partir daquele programa.
    Em um país onde pessoas, como o senador, lutavam pela inclusão, uma vez que a sociedade tornava-se cada vez mais excludente, o “show” produzia um espetáculo diário de competição através de artimanhas, cujo objetivo era excluir, eliminar o outro, para ganhar o dinheiro do prêmio.
    Cada pessoa que assistia àquele programa sentia-se como um Deus a observar a vida dos outros e a julgar os que deveriam permanecer e os que tinham que ser excluídos.
     As mulheres e homens usavam seus corpos como espetáculo, e os sentimentos eram forjados para aliciar a preferência e os votos da massa. Os piores expedientes eram utilizados a fim de manter a atenção e a devoção dos telespectadores. As famílias reuniam-se diante dos aparelhos de televisão e seguiam aquela farsa como se acompanhassem o fato mais importante do momento. Criavam-se torcidas para os “preferidos da casa”. Glamurizava-se uma experiência de ócio e ficção rasteira como se fosse o mais profundo realismo. Enquanto isso, todos os males do país ficavam esquecidos. E a realidade, propriamente dita, era abandonada e relegada.
     Diante desse quadro, o caso do senador foi caindo no esquecimento, junto com tantos outros episódios fundamentais para a construção da verdadeira cidadania. Substituía-se a democracia real, por uma interação virtual. As pessoas de verdade e a vida eram trocadas por personagens e tramas inventadas pela mídia, na produção dos seus programas.
    Os horários da programação, antes limitados, passaram a ocupar várias horas do dia.
    Quando ela, a enfermeira, ia fazer as suas visitas ao quarto, os poucos funcionários que ainda permaneciam na base estavam reunidos em torno dos aparelhos de TV, acompanhando os últimos lances que eram apresentados diretamente da casa.
     Se por um lado, a mídia funcionava desviando a atenção das pessoas e alienando-as do que acontecia no país real, fazendo-as, inclusive, esquecerem do episódio do senador, por outro lado ela provocava um esmorecimento da vigilância, o que, para a enfermeira, era a criação da situação propícia ao desenvolvimento do seu plano.
    Ninguém sabia direito quais foram os expedientes tomados pelas autoridades para administrar o desaparecimento estratégico do paciente. Alguns compromissos mais urgentes do senador haviam sido saldados através de “representantes oficiais”. Era como se o caminho fosse sendo varrido, limpo de qualquer rastro. Parecia mesmo uma trama sutil para fazer com que o senador sumisse do mapa, da política e da história do país.
    Ela não entendia bem, mas a sua intuição indicava que precisava tirá-lo dali. Aquilo já se tornara a sua obsessão. Todos os seus passos, cada um dos seus pensamentos, o menor dos seus gestos estava voltado para aquele objetivo. Cada vez mais, o desenrolar dos acontecimentos só fazia por aumentar a sua decisão. O único problema era como fazer. E depois, caso conseguisse, quais seriam os próximos passos?
    No criado-mudo, ainda estava aquele cordão com a medalha. O sol e a lua. Ela sorriu, olhando para a medalha. Ficou sonhando com um outro tempo, transportou-se por alguns segundos para um outro cenário. Depois tornou a olhar para o homem, ali, deitado, com aqueles olhos abertos e parados. Quem sabe ele também não sonhasse com ela, com os velhos tempos? Quem sabe? Afinal guardara aquela medalha tantos e tantos anos. É verdade, ele não era qualquer um! Era mesmo um ser especial e ela era grata por tê-lo conhecido e depois poder reencontrá-lo ali, naquela circunstância. Agora era preciso salvá-lo. E ela acreditava piamente que conseguiria fazer isso. Tinha toda a certeza.
     A transformação do rosto dele era impressionante, parecia mesmo uma outra pessoa. Que doença estranha era aquela, capaz de produzir semelhante fenômeno? E o mais curioso era que o homem, aparentemente, não sofrera nenhum dano físico, apenas algo em seu semblante havia mudado radicalmente, tornando-o irreconhecível. Não para ela que acompanhava cada detalhe daquela metamorfose.
    Será que alguém mais visitava o senador? O que acontecia nas horas em que ela não estava lá? Os boletins que ela preenchia com o relato de suas visitas eram entregues para a secretária na portaria. E depois, para onde iriam? Quem acompanhava o caso? Já há muito tempo não recebia novas instruções. Começou a achar tudo mais estranho que de costume. Resolveu investigar, mas também, para isso, toda cautela era necessária. Não podia chamar atenção sobre ela e o caso.
     Desde que começara a metamorfose ela deixou que a barba dele fosse crescendo. Ela ia aparando e mantendo. Não recebeu qualquer instrução ou recriminação e continuou trabalhando com o seu plano. A idéia que lhe nascera, quando vira as primeiras mudanças na expressão dele, foi sendo colocada em prática, e apesar de já ter mudado a cor dos cabelos dele, e daquela barba que cultivava, não houve nenhuma recriminação. Ninguém questionava nada. Era mesmo incrível, mas pareciam haver esquecido do senador. O salário dela continuava sendo depositado em sua conta. Os boletins eram entregues. E mais... nada! Ninguém a procurava. O mais absurdo era o povo. Já há meses que o assunto do senador estava completamente abandonado. O “mal de Brito” fora substituído pelo “reality show”.
     Ela começou a achar que o tempo urgia. Era dessa invisibilidade que eles precisavam para dar um fim nele. A qualquer momento apareceriam com alguma surpresa. Quanto a ele, parecia dar sinais de melhora. Os olhos continuavam parados, mas havia neles algum tipo de luz. Ela chegou a pensar naqueles casos em que o paciente tem uma súbita melhora nos momentos que antecedem à morte.
     Conferiu tudo que podia. As condições de saúde dele estavam boas, exceto pela imobilidade total que persistia. Quando não estava com ele, ela estudava, pesquisava em todos os livros de medicina que encontrava. Leu tudo que fora escrito sobre o caso. Mas, como todos, ela também nada concluíra. Pelo fato de se ter colocado em dedicação total a ele já o conhecia muito bem. Aquela natureza ia sendo decifrada por ela. E foi assim que percebeu a grande transformação que se estava operando.
     Naquele dia os olhos dele estavam com uma nova vitalidade. Não havia dúvida, algo estava muito próximo de acontecer.
    E foi com essa sensação que ela saiu, ao final de sua vigília.
    Os corredores estavam vazios e silenciosos. Ela, a cada passo, a cada olhar, constatava o abandono em que tudo ali se transformava. O mais estranho foi não ter encontrado a moça na portaria. O balcão estava vazio. Olhou ao redor, viu uma luz acesa e ouviu algumas vozes em um dos quartos lá no fim do corredor. Andou até lá, lenta e sorrateiramente, e ouviu com atenção. Os poucos que ainda restavam ali estavam acompanhando o tal programa na televisão. Comentavam e faziam apostas sobre qual dos participantes seria o próximo a sair. Vez por outra ficavam em silêncio ouvindo os comentários do apresentador ou prestando atenção ao que acontecia na casa.
     Ela voltou, foi até o balcão, conferiu se não havia ninguém e entrou para trás do balcão. Abriu uma portinha que havia ali, onde percebera que sempre a atendente guardava os boletins que ela entregava. Foi nesse momento que se deparou com um fato inesperado. Todos os últimos boletins estavam ali, sem nenhuma anotação ou qualquer indício de que houvessem sido vistos por alguém. Era uma pilha de papéis abandonados, já há bastante tempo.
    Agora não existiam mais dúvidas. Era um caso perdido. Tudo era mesmo uma questão de tempo. Ou ela dava um jeito para ele sair dali, ou a qualquer momento eles dariam um fim nele. Se o descaso chegara àquele ponto, o próximo passo seria o desfecho que ela já previa. Era preciso agir rápido. Guardou os outros boletins, fechou a porta do armário, saiu de trás do balcão e tocou a campainha que havia sobre o mesmo.
    No fim do corredor, a porta se abriu e ela percebeu um certo alvoroço e algum desconforto daqueles que lá estavam. Alguém chegou até a porta, houve um que saiu em direção ao final do corredor e a moça seguiu para o balcão. Comentou sobre o programa. Ela foi lacônica em sua resposta ao comentário. Entregou o boletim da visita, despediu-se e foi embora. Precisava preparar tudo. Com aquele programa estando nos seus momentos de maior interesse para os funcionários do hospital, era a ocasião ideal para tirá-lo dali.

Comentários

Anônimo disse…
deliciosa narrativa!
Anônimo disse…
Deliciosa narrativa!

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