Diário do escritor que não fui
15 de julho de 2018
Consegui aqui um tempo. Um final de domingo. 17:51. Do lado de fora da janela, já escureceu. Ainda há pouco estava lendo um outro diário. “Quarto de Despejo”, “diário de uma favelada”, de Carolina Maria de Jesus. Texto maravilhoso e pungente. Ela vai contando seu duro cotidiano e costurando preciosidades pelas suas páginas. Nos pequenos intervalos que conseguia na sua luta pela sobrevivência, arrumava um cantinho e ia escrevendo seu livro que nascia daqueles cadernos onde anotava suas impressões, sua realidade e seus sonhos. Foi ela, em seu texto, que me fez, agora, neste momento, começar também a fazer aqui este diário.
Minha vida inteira alimentei o sonho maior de ser um escritor, mas os descaminhos que a existência nos obriga não me permitiram. Também tenho os meus cadernos espalhados pelas gavetas da vida. E alguns livros não editados, por falta de dinheiro, mesmo! Pois é muito difícil, sendo um desconhecido nada ilustre, sem berço de ouro e não sendo nenhum gênio fenomenal, nem tendo amigos influentes, insisto, tornou-se muito difícil publicar meus escritos. Tenho escrito minhas modestas peças teatrais e representado algumas aqui, nesta pequena e injusta cidade de Petrópolis, onde vivo. Ator e professor. Ensaio textos, faço leituras e dramatizações. Corrijo provas e textos de alunos, que em sua grande maioria não têm a mínima intimidade ou o menor interesse pelas palavras, o que me foi deixando muito cansado e desiludido. Houve, claro, algumas exceções felizes, mas muito raras e passageiras.
Quantas vezes havia bons livros para ler e ideias para um conto, uma novela, uma poesia mas precisava corrigir testes e provas, preparar aulas para jovens que não faziam a menor questão de aprender nada. Preencher diários de classe e contribuir para a grande farsa que se tornou a educação, infelizmente. Os “administradores” querem números para a estatística lhes ser favorável. Mais nada!
E mesmo a vida em casa não abre muito espaço para o exercício do escritor e foi nesse ponto que eu admirei a escritora Carolina Maria de Jesus. Tudo era obstáculo, tudo era dificuldade, mas foi exatamente dessa circunstância que ela tirou os fios e a trama para tecer a sua escrita. Então, eu, aqui, resolvi, também, caminhar por uma estrada paralela. Deixando brotar desta vida, do jeito mesmo como ela é, hoje, aos 63 anos, este diário, tendo o compromisso maior da minha honestidade, comigo principalmente e com alguém, que por acaso, quem sabe, um dia, venha a passear por estas palavras.

16 de julho de 2018
Ontem, a noite não terminou bem! Discussões atrapalharam tudo. Obras que estão sendo concluídas na casa, as minhas dificuldades com os aspectos práticos da vida e o nervosismo excessivo da companheira. Às vezes, a vida a dois fica muito difícil. O resultado foi uma noite mal dormida. O dia de hoje foi de trabalho na casa. Aspirador, limpezas, essas coisas... Depois ir ao banco para pagar as contas. A falta de dinheiro tensiona qualquer relação. Tudo fica mais difícil e inseguro. Cobranças e culpas começam a minar o território da existência. Assim é viver em um sistema perverso e injusto como este em que vivemos. Agora é noite, outra vez. Amanhã escrevo mais. Estou cansado. Ela foi a uma festa e eu voltei para casa. Precisava de silêncio...

17 de julho de 2018
Estou no Rio de Janeiro, Humaitá, casa da minha sogra. Quando chegávamos ao Rio, Pita olhou para o céu e disse: “Ih! Roubaram o Cristo!!!” O nevoeiro havia ocultado a imagem. Então começamos a imaginar uma história, quem sabe um conto, que tivesse o título de “O dia em que roubaram o Cristo”. O carro seguia e nós íamos criando histórias, possíveis versões para aquela ideia, rimos bastante!

18 de julho
Amanheceu um lindo dia no Rio de Janeiro. Da janela, vejo o sol esparramado nas folhas das palmeiras. O Cristo está lá, não foi roubado, ainda. Helicópteros sobrevoam, carros passam. Pássaros brincam pelos céus. Ouvem-se sirenes.
Mas a manhã amanhecera em guerra. O som dos tiros era impressionante. A que ponto chegamos! Abandono, desigualdade, exclusão, falta de investimentos em educação, saúde, habitação e tantos outros serviços e políticas tão necessárias.  Agora convivemos com essa barbárie. Não, o Cristo não foi roubado, mas nesta manhã, perplexo diante do que via, ali, no Morro Santa Marta, não fosse ele de matéria tão concreta e imóvel, teria erguido seus braços e ocultado os olhos, ou, quem sabe, transformado seus braços em asas e voado definitivamente, abandonando sua missão impossível de “Redentor” desta cidade cuja maravilha foi sequestrada pelas perversidades do capital e de suas nefastas consequências.
Enquanto todas as atrocidades vão acontecendo, o povo continua torcendo por seus times de futebol, viram “brasileiros” durante a copa e seguem as narrativas criadas pela ficção da rede Globo como se fosse verdade. Os golpistas que assaltaram o país com apoio do legislativo e do judiciário estão mandando às favas uma série de conquistas de direitos da população. Estão arrasando a nação e vendendo nossas riquezas com a anuência de um povo iludido e de uma classe média que só busca privilégios e detesta os pobres. Ignorância, preconceito, individualismo e uma falsa moralidade estavam chocando o “ovo da serpente”, que, agora, está destilando o veneno chamado fascismo.
E, à noite, saindo de um restaurante, ouvi pessoas conhecidas, falando as maiores sandices sobre o que acontecia no país, gente alienada, que nada entende e que fica rindo e fazendo piadinhas sobre aqueles que tomam uma posição contra todas as arbitrariedades que são cometidas cotidianamente. Cansei de ouvir besteiras dos que se acham acima do bem e do mal e que em uma postura cínica advogam seu parasitismo em nome de uma “modernidade” que nada mais é do que a sua má consciência e o ranço preconceituoso do seu recorte de classe. Classe mé(r)dia, obviamente.

19 de julho
Hoje me dediquei aos textos e à história de vida de Carolina Maria de Jesus. Muito tenho a falar sobre ela. Seus livros são fundamentais para que se entenda o país onde vivemos. Salvei em meu computador os principais livros da escritora e alguns vídeos e programas sobre ela. Vou dividi-los com meus alunos e provocar algumas reflexões sobre linguagem, literatura e sociedade. Agora estou cansado, amanhã pretendo falar um pouco sobre a ideia de como surgiu em mim o escritor que não fui.

20 de julho
Dessa vez não representei o personagem do Santos Dumont, em sua casa, no dia do seu aniversário, o que vinha acontecendo há muitos anos. Não sou muito bem visto pela atual política que administra a cidade. E resolveram contratar um outro que cobra um cachê mais barato. É assim que os atores em nossa cidade são aviltados, com a ação dos oportunistas e o despreparo e a falta de bom senso das “otoridades”.
Constato, que apesar de tanta desconfiança, medo e competição entre as pessoas, um gesto de gentileza, um sorriso de agradecimento e um ato de solidariedade fazem uma diferença incrível e provocam reações tão necessárias à pacificação das relações e a melhoria da vida nas cidades. Hoje, experimentei isso, em meu caminho pelo Rio de Janeiro. E havia até me esquecido que este dia, também é chamado de “Dia do Amigo”. Já fotografei muito e dei muitos abraços, em outros 20 de julho, encarnando o aniversariante Alberto Santos Dumont.
Bem, mas vamos ao início de tudo, quando começava a surgir em mim, o escritor que não fui. Minha cartilha chamava-se “Tapete Mágico”. Usava o método da silabação. A cada página uma nova descoberta na construção daquela ferramenta que eu começava a dominar. A última lição, se eu me lembro bem, já era um pequeno texto e então começava a grande aventura das palavras e das histórias, voando naquele “Tapete Mágico”!
 Lembro-me também do grande fascínio que foi entrar na pequena biblioteca pública da cidade e andar entre os corredores de estantes cheias de livros. Até hoje, quando entro em bibliotecas, recupero, de certa forma, aquela primeira impressão e aquele prazer dos dias de menino.


Comentários

Heitor Victor disse…
Saiba, Sylvio, que acompanharei assiduamente esse desafogo e adiando que, se muitas coisas te desalentam, ao menos aqui terá um pupilo atento que jamais esquecerá o quanto esse escritor-que-nunca-foi plantou a maior e mais belas de todas as sementes em meu coração. Saúdo-te, Mestre.
BLOG DO SYLVIO disse…
Heitor, na manhã de domingo, leio tuas palavras e um sol renasce em meu coração. Obrigado!]
Abraço do Sylvio!

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