Olhos Parados - Capítulo 4

4

À noite, a lua espraiou-se pelo campo e pelo pasto. O morro adormecia, subindo pela curva do caminho, entre as cercas de bambu.
O botequim iluminado ia recebendo, um a um, os seus habitantes. Chico Defunto foi o primeiro a chegar, com seu jeito malandro e alegre. Depois veio Bem-te-vi, o gago cantor; o velho Léo; o Ademar; até o Dodô foi se chegando, junto com a Catinha. Sabão entrou e todo mundo estranhou. Afinal, “o sábio” só aparecia no boteco, à tardinha, nunca àquela hora da noite.
Sabão tinha esse nome por várias razões. Era o sabe-tudo, ao mesmo tempo em que tinha um gênio sempre pronto a desancar qualquer interlocutor. Vivia dando atestado de ignorante para Deus e o mundo. Mas quando apegava-se a alguém, que lá pelos motivos dele achava que tinha de ajudar, então era só atenção e paciência. Muitas histórias eram contadas a respeito do seu passado, nas mais variadas versões. Ninguém sabia de verdade o que, ou quem havia sido o Sabão, em sua juventude. Diziam que foi importante, que teve dinheiro, mulheres, posição social, mas ninguém provava nada. Por isso Sabão já era um mito do morro, com todas aquelas lendas envolvendo-o em uma aura de mistério.
Por alguma dessas estranhas razões que a própria razão desconhece, Sabão alimentou uma predileção e um apreço todo especial pelo garoto José Carlos, o Zé cabritinho. Era dessa forma que o resto da molecada tratava o garoto, quando queriam infernizá-lo. E conseguiam. Ele não suportava aquela provocação. Mais de uma vez rolara pelo chão aos socos e pontapés por causa daquela brincadeira que o enfurecia. O pai era chamado de Zé cabrito e o filho ganhara a herança do codinome: Zé cabritinho. Quem mandou ser chamado de José Carlos de Brito, e Júnior, ainda por cima?
A coisa ficou pior ainda, depois que o Enricão foi visto em íntimo e terno enlace com uma cabrita. Enricão havia chegado lá da roça, fazia pouco tempo, e trouxera seus hábitos para o morro, só que por não estar bem situado na nova geografia, acabou escolhendo um local e uma hora não tão apropriadas para o seu namoro com a jovem caprina. Conclusão: foi visto pelas principais fofoqueiras do lugar, que trataram logo de espalhar pela vizinhança as predileções e os dotes do rapaz. O boato correu e ganhou tom e cores romanescas. Enricão ficou famoso, cedo, cedo. Mas o preço da fama costuma sair caro. Enricão, coitado, virou o tarado do morrão. Logo ele, tão tímido! As meninas se dividiram, umas abominando o ato e outras invejando a sorte da cabritinha, a essa altura já cognominada de Enriquinha.
Após esse episódio, os garotos acrescentaram ao epíteto de Zé Cabritinho a frase fatídica: “ – Cuidado com o Enricão!” - Isso era o bastante para provocar a fúria incontida do José Carlos que se inflamava e entrava em erupção, distribuindo socos e labaredas para todos os lados derramando lavas e porradas por todos que estivessem por perto participando da provocação.
Mas o fato é que Sabão tornou-se amigo do garoto e um dia levou lá no boteco um livro e deu de presente para o Zé Carlos. Sabão desenvolveu a teoria de que o menino estava fadado a ser alguém muito importante, e para ajudar nessa escalada do jovem, começou a dar os primeiros impulsos.
Era um livro de capa vermelha, com letras douradas. Um volume de uma coleção chamada “Grandes Vocações”, feita para a juventude. Escritores famosos da língua pátria narravam biografias de personalidades ilustres na história da humanidade. Quis o destino, com a ajuda precisa do Sabão, que o livro presenteado ao Zeca fosse o volume dedicado aos grandes libertadores. Uma história, em especial, conquistou o interesse do jovem: Simon Bolívar, narrada por Orígenes Lessa.
Fora aberta uma porta para a viagem e começaram a se esboçar os primeiros sinais na cartografia daquele mapa.
Simoncito, que antes de ser Simon, seria Pedro, Pedrito, mas que no momento do batismo, como contava o livro, virou Simon como um dos seus antepassados. O padre que o batizou, no momento de pronunciar o nome, trocou de Pedro para Simon e assim ficou. Segundo o padre fora uma inspiração divina que lhe indicara aquele como o nome do futuro libertador.
Esses acontecimentos, trazidos pela voz do narrador, foram encantando o menino José Carlos. E quando a infância do pequeno Simon ia sendo contada, sua personalidade passou a ser o grande atrativo e referência a magnetizar os sentidos e as idéias do garoto.
Mas voltemos à noite do botequim. Era uma daquelas noites mágicas em que todos apareciam. Bem-te-vi chegou no finzinho da tarde, com suas histórias e sua gagueira típica. Camisa colorida, mas sem exageros. Um leve toque de vaidade. O anel, o cordão dourado. Mas o clímax da sua presença era mesmo quando ele se desprendia das sílabas que o acorrentavam e às vezes quase o afogavam, e alçava vôo através das melodias que ele cantava como ninguém. Nelson Gonçalves era seu ídolo. Quando subia o morro, já que não morava ali, era sinal de que na certa haveria uma rodada de seresta. E no mais alto estilo. Apesar da vaidade do artista, era generoso e engraçado com as suas histórias atropeladas de vacilações, gagueira e às vezes um ritmo surpreendentemente veloz.
O velho Léo chegou com o violão debaixo do braço e foi logo saudado por todos. Após ser servido em sua “branquinha” provocou o Chicão: “ – E então Chicão, tu ainda não recolheu as carta do caixão?” – Todos riram. E riram porque conheciam bem a história.
O Chico Defunto, magro como o quê, mulato chegado a um carteado em geral e a uma “rondinha”, em particular. Já levantara muito jogo, fugindo da polícia que perseguia a malandragem. A alcunha de “defunto”, segundo todos contam, ganhou desde que uma vez, trabalhando em uma casa funerária, dormiu à noite em um dos caixões e foi descoberto, lá, no outro dia, ainda sonhando com o baralho. Quando foi acordado, aos gritos do patrão, levou um susto, achou que era a polícia e saiu gritando: “ – Pega as carta!!! Pega as carta!!! Olha os ômi!!!” Desde então era conhecido em todos os morros como o Chico Defunto.
De certa forma todos tinham alguma simpatia pelo garoto Zé Carlos e ele por eles. Gostava de acompanhar as serestas, fazendo batucada. Havia sempre aquele momento, o auge, quando pareciam afinar na mesma alegria e cumplicidade. De vez em quando resolvia-lhes algumas dúvidas vernáculas, respondia-lhes algumas questões, pois o pouco que estudara já era mais do que muitos deles haviam atingido. Até mesmo já ajudara um deles a escrever umas cartas para uma amada distante. Mas isso era coisa de muita intimidade e alto segredo.
Bem, mas o que essa noite tinha mesmo de grande novidade era a presença do Sabão em hora tão inesperada. Ele, ao ver o Zé Carlos, perguntou-lhe se já começara a ler o livro. O Zeca, mais que depressa, disse que sim, e que estava gostando muito da história do Simon Bolívar. Sabão lhe prometeu outros livros, caso ele apreciasse mesmo aquele primeiro.
Por um instante, quando o garoto se referiu ao Simon Bolívar, surgiu na expressão do velho homem uma ponta de luz e seus olhos pareceram viajar para um cenário de sonho. Mas, logo em seguida, ele se sentou à mesa do canto do bar e seu olhar pareceu ter fugido para algum outro mundo sombrio.
A verdade, é que o Sabão não era de beber muito, mas naquela noite, muitas coisas mudariam.
O Zeca só não contou para o homem que graças àquele livro já começara a procurar outros. Nomes que eram mencionados na história de Bolívar. Aquele tal Rousseau e o seu romance que fora queimado em praça pública. E o Voltaire... Todas aquelas idéias e nomes deixaram a curiosidade do menino irremediavelmente aguçada. Isso iria levá-lo a uma longa viagem sem volta.
O homem e a natureza, o contrato social, essas palavras soavam instigadoras para ele de uma forma inexplicável e avassaladora.
Tão avassaladoras eram essas idéias quanto os peitos da Catinha que a cada dia pareciam crescer mais e mais, como se pulassem dela para ele, ameaçando-o de prazer, torturando-o de desejos. Catinha era mais velha que ele. Já tinha um namorado e tudo. Mas parecia ter uma espécie de queda por ele. Ou então gostava de vê-lo apaixonado, naquele estado de urgência. A verdade é que ela já lhe ensinara várias coisas. Como por exemplo: andar de bicicleta, assoviar com os dedos na boca, subir em árvores... Mas existiam agora coisas mais urgentes. E com aquelas blusas que ela andava ultimamente... que valorizavam a natureza, que faziam despontar e ocultar ao mesmo tempo aqueles dois biquinhos sonhados, no topo das delícias. Ah! A Catinha e suas promessas!...
Bem, nem tudo eram só promessas. Às vezes, também havia aquelas secretas trocas de carícias entre as mãos dos dois, que se encontravam por baixo das mesas, ou então quando todos os outros estavam distraídos, resvalavam para trás das cadeiras e se tocavam ternamente. Era um desejo submerso, mas que ultimamente emergia cada vez mais. E a ponta do iceberg eram aqueles dois seios que encantavam e desesperavam o José Carlos.
Catinha passou pelo bar, como se procurasse alguém, e ao vê-lo sorriu.
- Oi! Você ainda tá aqui?!
- É...
- Tchau, José!
- Ué! Já vai?
- Eu tenho que ir! Tchau!
Ela piscou o olho, cúmplice. Ele ficou no ar, parado. No bar, o violão começava a ganhar o ambiente e as vozes iam se somando na melodia que seguia num crescendo...
Lá fora, a lua cheia deitava seu lençol de luz pelo pasto e o olhar comprido do Zé Carlos foi sendo carregado para o rastro da garota que seguia derramando magia pelo morro.
Por que ela passou ali? Talvez aquilo fosse algum sinal para que ele a seguisse. Não queria vacilar outra vez e fazer papel de bobo como de outra feita, quando subiram juntos o pasto e ela se deitou ao seu lado. Daquela vez, ele cobiçara mais do que nunca aqueles seios. E só estavam os dois lá. Mas ele não entendera direito todas aquelas indicações. E a inexperiência e o medo fizeram com que ele deixasse passar aquela doce oportunidade. Penitenciou-se várias vezes por aquela chance perdida. Achou mesmo, durante um tempo, que ela já não quisesse mais nada com ele depois daquilo.
E agora? O que acontecia?
Ele tomou coragem e foi atrás dela, mas logo, logo, percebeu o que se passava. O namorado a esperava no caminho. Rápido, Zé Carlos escondeu-se próximo a uma moita de bambus e viu os dois entrando no portão da casa dela e se chegando a um canto escuro. Os barulhos que os dois faziam provocaram no garoto uma estranha sensação, um misto de inveja, curiosidade e excitação. Ele queria e não queria ver o que se passava. Foi quando apareceu o Dodô...
- O quê que tu tá fazendo aí?!
- Nada, ué! - Vamos lá no campo, ou tu já vai pra casa? Eu acho que eu vi um cavalo lá!
O Zé Carlos entrou mais para o lado da moita e disse sôfrego, segurando o pau:
- Pega aqui!
E o Dodô, espantado:
- O quê!?
- Pega aqui logo, pô!!!
Então o Dodô, excitado e alegre, segurou o desejo do José, que de olhos fechados gemia. E foi rápido que ele se saciou com os movimentos caprichados do Dodô...

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