Olhos Parados - Capítulo 5

5

A imagem do Sabão, lá no bar, estava marcada no pensamento do Zé Carlos. Aquele jeito de falar, aquele olhar...
Agora ele, já na cama, pegou o livro e foi direto lá pras terras do Simon Bolívar. Por um instante ainda lembrou da Catinha e da mão do Dodô.
Levantou, foi até o banheiro, lavou o rosto mais uma vez como se quisesse apagar alguma coisa dentro de si. Já tomara banho, mas parece que só então lavava definitivamente o rosto e com ele certos pensamentos. Era um ser dividido. Um estava no mundo da Catinha, do Dodô, do Chico Defunto, do Léo, do Bem-te-vi; outro estava no planeta do Sabão, junto com as aventuras do Simon Bolívar. Como equilibrar esses mundos? Como aproximar essas realidades? Não, agora não havia jeito. Deixou que uma das partes fosse embora pelo ralo da pia junto com a água que ia sumindo. Olhou-se no espelho e de novo ouviu aquela voz que perguntava e respondia:
- O que você quer de mim?
- De você, eu quero você!
Passou a mão no espelho como se apagasse o próprio rosto e voltou para o quarto. Pulou para a cama, onde o livro aberto o esperava...
Simon Bolívar e o seu mestre Simon Rodriguez. Todas aquelas andanças pelo mundo em uma rede de aventuras e libertação. A coragem para mudar um mundo injusto. A busca de união e a capacidade de aprender com as próprias derrotas. Não esmorecer nunca. Tudo isso deixava o José Carlos em uma atmosfera de fascinação. Ele, menino pobre, que não viajava por total carência de recursos, viajava com seus heróis, através da leitura, no veículo encantado das palavras.
Ler era possuir asas, era ampliar em muito a possibilidade dos olhos. Descobrira isso desde que chegara à última lição de sua velha cartilha. Essa era uma das diferenças entre ele e os outros garotos do morro.
A primeira vez que entrara na Biblioteca Municipal foi tão fascinante quanto em outra ocasião, em que ainda bem criança, entrara na sede da banda e ouvira os músicos afinando os vários instrumentos. Todos aqueles sons eram fogos de artifício, beleza que explodia e se derramava sobre os seus sentidos. Fora uma felicidade que se inaugurara ali e que tinha gosto de eternidade.
Pois com os livros da biblioteca acontecera algo semelhante. Aqueles corredores com as estantes cheias de títulos e as cores tantas das lombadas dos livros. A pequena Biblioteca Municipal era o próprio labirinto cósmico. Milhões de galáxias e ele ali, o cavaleiro das estrelas, solto no ar das possibilidades. Depois, no balcão, a moça lhe entregava a carteirinha. O passaporte. Começava a grande viagem. E foi para essa viagem que o Sabão contribuíu. Quando descobriu que o garoto gostava de ler, resolveu lhe oferecer mais algumas estradas e portos. E era em uma dessas estradas que, naquela noite, José Carlos caminhava, nas trilhas do Simon Bolívar.
O mundo precisava era de homens como aquele. Nascemos em um mundo invadido, desvirtuado. Era necessário reinventar o mundo. O garoto pobre, em um morro da América do Sul realimentava o mito. O herói renascia nele, pelas palavras de Bolívar:
“ – Juro, na sua presença, pelo Deus de meus pais, juro por eles, juro por minha honra e pela pátria, que não darei descanso a meu braço nem repouso à minha alma, enquanto não tiver rompido as cadeias com que nos oprime por sua vontade o poder espanhol!”
Cortez, no México. Pizarro, no Peru. Valdívia, no Chile. E tantos outros opressores que invadiram, adentrando pelos templos das almas autóctones, destruindo suas paredes, rasgando os seus céus, tirando-lhes o chão, esfaqueando os seus deuses e depois jogando suas vísceras para o banquete dos abutres. Mas o mais cruel de tudo foi nos terem tornado tão desunidos; foi nos terem transformado, de irmãos, em inimigos; foi nos terem iniciado na negra magia da mentira e da traição.
Mas nós, mestiços, negros, indígenas; nós, os pobres da terra, um dia começamos a recuperar o sentimento da nossa igualdade. Pois fomos irmanados em uma mesma carência, vítimas de uma mesma opressão. A mão que nos lançou uns contra os outros é a mesma que nos assassina, que esmaga os nossos filhos e violenta nossas mulheres. É a mão do algoz, disfarçada de carícia, com acenos de uma torpe cumplicidade que após nos aliciar ao crime, assina a nossa sentença e aperta a corda em torno do nosso pescoço. Aplaudindo seguidamente ao nos ver dependurados, inertes, sob o sol da América.
Povos, línguas e culturas eliminadas, extirpadas. E até hoje continuam sendo. Por iniciativas oficiais ou em episódios particulares. Como o José Carlos, já como senador tomou conhecimento. Lá mesmo, em Brasília, o pataxó Galdino, ardendo em chamas em uma calçada. Queimado pelo fogo ignorante da insensatez e da arrogância de uma jovem burguesia destituída de valores, miserável. A crueldade do invasor estende sua teia através dos tempos. E o Simon Bolívar lido pelo menino José Carlos, tinha o sonho de unificar a América em uma pátria comum e liberta. Mas a rede de poder e glória, a ganância dos políticos e generais tinha outros planos para o traçado dos territórios. E multiplicaram-se as cicatrizes no mapa dos ressentimentos.
Bolívar após libertar tantos povos, após entrar triunfante e aclamado, depois de sofrer exílios e traições, depois de receber títulos, de ser proclamado presidente vitalício do Peru, começou a ver o seu sonho do pan-americanismo ruir. Foi acusado de tirania e tentaram assassiná-lo. Então apontou para o próprio coração e disse: “Estou moralmente assassinado. Os punhais feriram-me aqui...” Ele, que certa vez disse que a continuidade da autoridade num mesmo indivíduo marca freqüentemente o fim dos governos democráticos, e que também afirmara que as repetidas eleições são essenciais nos sistemas populares porque nada é tão perigoso como deixar permanecer longo tempo o poder nas mãos de um único cidadão. No entanto, foi acusado de tirano.
No congresso de Bogotá, apresentou sua renúncia, já não seria mais presidente do Peru, nem ditador da Colômbia. A tuberculose tomara-lhe os pulmões, e a execração dos que o odiavam e invejavam tomaram-lhe a alma. Entregou sua autoridade, mas fez um apelo em nome da Colômbia: “permanecei unidos, para não serdes os assassinos da Pátria, nem vossos próprios verdugos!”
Depois, recolhido em uma quinta, numa casa modesta, só e triste, com a ajuda de um único admirador, ironicamente, um espanhol, passou seus dias a ler. “Os 3 maiores loucos da História fomos nós: Jesus Cristo, D. Quixote e eu.”
E a 17 de dezembro de 1830, delirando: “Vamo-nos, vamo-nos...Esta gente não nos quer nesta terra...” Morreu o libertador.
Mas o jovem cumpriu a promessa que fizera ao seu mestre que mais tarde disse para outro jovem: “Tu sabes, hijo, que el muchacho cumplió su palabra...”
Assim terminou a história. O José Carlos fechou o livro e por um instante lembrou do Sabão, daquele olhar... E ele apareceu ali com sua presença forte, inteira. Parecia olhar fixamente para um ponto e em seguida para o garoto. Depois sumiu. José Carlos olhou o relógio na parede. Era tarde. Adormeceu...

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