Casa da Morte e a justiça?

Elio Gaspari


O médico do DOI deixou uma aula para a procuradora Zandonade

A procuradora da Fazenda Nacional Adriana Zandonade quer inaugurar um novo capítulo na história dos direitos humanos no Brasil. Ela meteu-se numa história comprida e vale a pena contá-la desde o início.

No dia 5 de maio de 1971, a cidadã Inês Etienne Romeu, quadro de chefia da organização terrorista VAR-Palmares, foi presa em São Paulo pelo delegado Sérgio Fleury. Três dias depois, tendo passado pelo Hospital Central do Exército, no Rio, foi levada para uma casa de Petrópolis (Rua Artur Barbosa 668, de propriedade de Mario Lodders). Lá ficou até o dia 11 de agosto. Foi sistematicamente torturada e, por duas vezes, estuprada.

Tornou-se a única pessoa a sair viva daquilo que mais tarde viria a se chamar Casa da Morte. Era um aparelho clandestino do Centro de Informações do Exército, tripulado por oficiais no exercício burocrático de suas funções. Pelas contas de Inês, lá foram mortas pelo menos quatro pessoas.

Atualmente, Inês Etienne Romeu está na Justiça, pedindo que se reconheça que foi mantida em cárcere privado por torturadores a serviço do Governo da época. Não quer mais nada. Não está pedindo indenização pelo que lhe fizeram.

A doutora Zandonade sustentou que a denúncia de tortura e cárcere privado não se sustenta porque Inês sequer identifica as pessoas que a mantiveram em cativeiro. Foi clara: caberia à requerente indicar com clareza quem é o autor dos atos de tortura, incumbindo-lhe produzir a prova.

Beleza. Nesse caso, não desapareceu ninguém na guerrilha do Araguaia. Primeiro, porque o Exército jamais admitiu a sua existência. Segundo, porque os desaparecidos desapareceram. Da mesma forma, ninguém pode dizer que foi torturado no DOI-Codi, a menos que traga a identidade do torturador e o livro de ponto do calabouço.

Os procuradores são pagos para defender os interesses do Estado, mas qualquer vestibulando de direito sabe que isso não significa defender crimes praticados pelos governantes.

A doutora Zandonade não quis levar em conta o depoimento do tenente-médico Amilcar Lobo, que servia no DOI-Codi do Rio de Janeiro e reconheceu ter atendido Inês Etienne Romeu na casa de Petrópolis. Soberba. O depoimento do oficial deveria ser suficiente. Pergunta o advogado de Inês, Fábio Konder Comparatto: “Ela internou-se na casa de Petrópolis para uma cura de repouso? Terá o Exército por função providenciar o atendimento sigiloso de particulares?”

Felizmente, graças a Amilcar Lobo, que foi injustamente massacrado pela esquerda por ter contado o que fizera e o que sabia, a doutora Zandonade pode aprender mais a respeito do caso que rebarbou:

1) Em seu livro “A Hora do Lobo, a Hora do Carneiro”, Amilcar contou que foi mandado pelo major Rubens Sampaio (codinome Teixeira) à casa de Petrópolis para cuidar de uma presa ferida. Era Inês.

2) Sampaio contou a Lobo que “existia uma ordem do próprio ministro do Exército (Orlando Geisel) que todas as pessoas que abandonaram o país, principalmente as que escolheram o Chile como refúgio, deveriam ser mortas após esclarecerem devidamente as atividades terroristas do grupo a que pertenciam” (...) “Os presos eram interrogados e, posteriormente, mortos”.

3) Noutra ocasião, Lobo foi mandado por Sampaio a Petrópolis para cuidar de um preso chamado Papaleo, que via um tigre no jardim. Quando disse ao major que ele levaria algum tempo para recuperar a razão, viu Sampaio fazer o seguinte:

“Enquanto falava, colocou a mão direita no interior do casaco, na altura do peito e a retirou munida com uma pistola. Em seguida disparou um tiro, um único apenas, e o projétil, creio, atingiu a cabeça de Papaleo.”

“Lobo, não é a primeira vez que mato alguém aqui em Petrópolis, você sabe bem disto. Já foram mais de dez que seguiram este destino”, disse-lhe o major.

Uma coisa é certa. A doutora Zandonade conseguiu entrar para a pobre história dos direitos humanos nacionais. Não há porque duvidar de que ostentará a sua contestação ao caso de Inês Etienne como um indicador de sua competência profissional.

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