Olhos Parados cap. 12

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O pequeno tesouro que Zé Carlos herdara do Sabão cada dia trazia uma surpresa. Primeiro foram os próprios livros e depois algumas folhas com anotações e textos que o velho deixara esquecidos entre as páginas. Ainda havia os cadernos nos quais o garoto foi descobrindo que aquele homem era na verdade um velho sábio, mas um sábio que parece ter perdido o encanto e abdicado da sua sabedoria. Seus cadernos eram cheios de poemas, crônicas e reflexões. Sabão falava do que via e sentia no Morro da Cachaça e do que sabia do mundo. E quem diria!? Quanta coisa ele sabia!
Um dos cadernos do Sabão começava com a seguinte afirmação: “A realidade é sempre mais rica, mas sem sonhos nenhum real se justifica.” A partir desse pensamento, ele tecia os seus textos trazendo realidades com uma precisão microscópica. Às vezes, sua crítica ia fundo como um instrumento cirúrgico. Ele expunha, em sua lucidez, os nervos e as fibrilações mais internas dos fatos, arrancando deles o absurdo ou a maravilha que os concebiam. Era um jeito de ver o mundo que muita gente jamais pensara ou sonhara. Mas para o Sabão aquele era o olhar cotidiano. E lá, naquela forja onde o movimento era concebido, o Sebastião Venâncio media a temperatura e revelava o sonho e as motivações profundas que pulsavam aquém e além das realidades.
Então já dava para imaginar um pouco o que se passava com ele quando seu olhar se perdia em algum pensamento, ou quando ele se interessava vivamente por algo ao seu redor.
O jovem José Carlos ao entrar no mundo do Sabão, através de seus textos, foi fazendo uma excursão por realidades das quais, ao voltar, jamais seria o mesmo. Os livros e escritos avulsos lhe foram oferecendo visões de mundo que o tiraram aos poucos a inocência e a ingenuidade, ao mesmo tempo em que lhe acendiam a chama da revolta. O mundo, ao seu redor, carecia de significado e de mudanças.
Depois daquela noite, lá no pasto com a Catinha, José Carlos, quando ficou só, na curva do caminho, onde diziam que aparecia a mula-sem-cabeça, resolveu encarar os medos. Gritou para a escuridão desafiando os fantasmas para que aparecessem. Eles não apareceram e ele os venceu naquele momento. Então voltou pra casa e para os livros. Agora haveria outros fantasmas a enfrentar, como depois ele foi descobrindo.

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